Artigo brasileiro publicado no BMJ aborda a associação entre a especialização médica e as internações por condições sensíveis à APS

14 de dezembro de 2017

British Medical Journal, um dos principais periódicos científicos do mundo, publicou recentemente o artigo Association between hospitalisation for ambulatory care-sensitive conditions and primary health care physician specialisation: a cross-sectional ecological study in Curitiba (Brazil), de autoria de pesquisadores brasileiros. O estudo encontrou uma associação significativa entre a especialização em Medicina de Família e Comunidade e menores taxas de internações por condições sensíveis à APS no município de Curitiba (PR), especialmente para internações por insuficiência cardíaca, a principal causa de internações por condições sensíveis no Brasil. O trabalho foi fruto da dissertação apresentada para a obtenção do Título de Mestre em Saúde Coletiva do médico de família e comunidade Marcelo Pellizzaro Dias Afonso, pelo Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva da Universidade de Brasília.

 

Em entrevista à SBMFC, Marcelo nos conta sobre a motivação para escolha do tema de sua dissertação. Na sua percepção, grande parte da produção científica de hoje se debruça sobre assuntos pouco ou nada relevantes para a saúde das pessoas e das populações. “A meu ver, isso se deve em parte à pressão mercantilista das indústrias farmacêutica e de equipamentos médicos, em parte pela ainda pouca integração do meio acadêmico com os ambientes de assistência e gestão. No nosso caso, felizmente não sofremos de nenhum destes problemas”, explica o médico de família e comunidade sobre a bem-sucedida experiência de pesquisa junto aos seus professores orientadores da Universidade de Brasília.

 

Agora mestre em Saúde Coletiva, Marcelo conta que o trabalho foi resultado da colaboração de muitas pessoas, onde a vivência assistencial e de gestão como médico de família e comunidade foi muito bem complementada pela orientação experiente de professores da Universidade de Brasília, cujo apoio foi fundamental.  “Como médico de família e comunidade, é compreensível que este tema me seja especialmente instigante, mas foi uma preocupação em comum com os orientadores escolher um tema de pesquisa relevante, que idealmente pudesse ser útil no sentido de embasar políticas públicas de saúde”, argumenta.

O autor aponta que desde os tradicionais estudos de Barbara Starfield, a importância da Atenção Primária à Saúde para a eficiência e a sustentabilidade dos Sistemas de Saúde vem sendo bem descrita na literatura. “No Brasil, muitos estudos encontraram resultados de significativo impacto relacionados com a cobertura de Estratégia Saúde da Família, ainda que essa estratégia até os dias de hoje, lamentavelmente, não tenha recebido o necessário investimento”. Questionado sobre a qualificação do profissional que atua na APS, Marcelo lembra que a grande maioria dos médicos hoje atuantes na APS brasileira não possui nenhuma especialização, ou a possui totalmente descontextualizada do cenário dos cuidados primários. “Desta forma, consideramos bastante adequada a nossa pergunta de pesquisa – se a especialização do médico da APS pode estar associada a hospitalizações por condições sensíveis, desfecho relevante em saúde pública – já que, diferentemente dos países onde a APS é mais bem desenvolvida, no Brasil ainda se difunde a ideia de que ‘qualquer médico serve para trabalhar no postinho’“, complementa.

“Para a nossa surpresa, pesquisas com esse tema são escassas em todo o mundo”. O autor explica ainda que na maioria das pesquisas em que se investiga a influência da especialidade do médico em desfechos em saúde na população, na verdade faz-se uma comparação de médicos da Atenção Primária à Saúde com médicos dos demais níveis de atenção, e não propriamente entre os diferentes médicos especialistas presentes na Atenção Primária. “Países com Sistemas de Saúde fortalecidos, resultado da ênfase e centralidade da Atenção Primária à Saúde, como por exemplo, Reino Unido, Holanda, Espanha e Canadá, decidiram pela especialização médica obrigatória antes mesmo de que essas evidências [comparações entre diferentes especialistas na Atenção Primária] fossem construídas, com um importante percentual das vagas de residência médica destinado à formação em Medicina de Família e Comunidade. Para esses países, pareceu razoável que o treinamento específico considerando as particularidades dos cuidados primários melhoraria a qualidade do cuidado médico em seus sistemas”, defende.

No seu ponto de vista, o Brasil acabou trilhando um caminho diferente, onde só muito recentemente a Atenção Primária à Saúde começou a ter sua importância efetivamente reconhecida nos cursos de graduação em Medicina, bem como das outras áreas da saúde. “Isso ainda é incipiente em muitas das faculdades no país, especialmente nas mais tradicionais. À medida, porém, que evidências científicas vão sendo encontradas, corroborando as hipóteses já previstas há cerca de meio século pelos outros países quanto a importância da presença de um médico de família e comunidade bem formado nas Unidades Básicas de Saúde, algumas mudanças urgem”. O autor defende que, neste caso, não somente a graduação deve adaptar mais concretamente o seu currículo e corpo docente para as necessidades de formação do médico generalista, mas a pós-graduação médica passa a ser reconhecidamente necessária para adequado treinamento do médico da APS. “Vejo, portanto, como um passo necessário à implantação da obrigatoriedade de especialização por meio da residência médica, com vagas equivalentes ao número de egressos e com um mínimo de 40% das vagas direcionadas para Medicina de Família e Comunidade, conforme as necessidades de saúde da população e semelhante ao já aplicado pelos países citados acima há tantos anos”.

A expectativa é que o artigo sensibilize gestores, profissionais e estudantes. O resultado mais esperado é que os achados do estudo sirvam de subsídio para gestores em saúde para o necessário aprofundamento da discussão sobre formação médica para a APS no país e, em especial, a implantação da residência médica obrigatória com adequada distribuição de vagas das especialidades segundo as necessidades de saúde da população brasileira. O autor recorda que a Lei do Programa Mais Médicos (Lei nº 12.871, de 22 de outubro de 2013) prevê a universalização das vagas de residência médica, mas não garante a obrigatoriedade da especialização para exercício profissional de médicos no país. “Além disso, esperamos estimular que mais pesquisas sejam desenvolvidas nessa área, tendo em vista a relativa escassez de produção científica em APS e o pouco envolvimento de uma forma geral dos médicos de família e comunidade brasileiros com atividades de pesquisa. E torcemos, ainda, para que esses resultados estimulem o interesse de estudantes de graduação e jovens médicos ainda sem especialização pela formação em Medicina de Família e Comunidade como meio de se preparar adequadamente para o desafiante trabalho na APS brasileira”, complementa.

O artigo publicado no BMJ contou com a coautoria de Helena Shimizu, Edgar Merchan-Hamann, Walter Ramalho e Tarcisio Afonso, pai de Marcelo. “Escrever o artigo com meu pai foi uma experiência muito rica. Além de ser a minha primeira referência de excelência científica, meu pai é professor universitário com uma experiência invejável em métodos quantitativos, um assunto que pode ser um pouco espinhoso para marinheiros de primeira viagem.” Marcelo conta que, apesar de sua área de atuação não ser a saúde, Tarcisio pôde contribuir de maneira muito significativa no desenho do estudo e na análise dos dados. “Foi realmente um privilégio contar com o apoio dele, sem o qual muito provavelmente o estudo não teria chegado ao fim. Essa parceria contou com a enorme vantagem das nossas inúmeras, quase intermináveis conversas poderem se estender durante as nossas refeições, as caronas para o aeroporto e até mesmo por telefone madrugadas a dentro. Suspeito que minha mãe não tenha visto vantagem nisto, mas tenho certeza que a satisfação de ver o trabalho concluído neste momento é mais que dobrada na família. Esperamos que seja o primeiro de muitos”, conclui.

Acesse na íntegra o artigo publicado pelo BMJ Open no link http://bmjopen.bmj.com/content/7/12/e015322 e a dissertação de mestrado defendida por Marcelo Pellizzaro pelo link http://repositorio.unb.br/bitstream/10482/22159/1/2016_MarceloPellizzaroDiasAfonso.pdf