P4: Dezembro sem Médico

1 de setembro de 2015

Está com dor de barriga, procura o médico; teve relação sexual, procura o médico; quer fazer academia, procura o médico; está grávida, procura o médico; tem uma mancha na pele, procura o médico; está indo mal na escola, procura o médico; chegou aos 50 anos, procura o médico; está triste ou não está dormindo, procura o médico; usa drogas, procura o médico; tem rugas, procura o médico; o bebê está chorando, procura o médico; está fraco ou cansado, procura o médico; tem hábitos de vida não saudáveis, procura o médico; o pai morreu, procura o médico; está com medo de ter câncer, procura o médico.

O conceito de saúde da OMS – "situação de perfeito bem-estar físico, mental e social" –, embora considerado ultrapassado por alguns, não tem em si nenhuma alusão ao acesso ao médico. No entanto, tenho observado entre amigos, colegas de profissão, familiares, pessoas que atendo na unidade de saúde e até na imprensa, que a sociedade brasileira (talvez de diversos outros países também) se organizou culturalmente de maneira a precisar de médico em situações normais do ciclo de vida, vinculando  o conceito de saúde com o acesso ao médico.

Não sei bem, historicamente, quando e como foi que isso aconteceu. Certamente, sofreu influência das grandes indústrias farmacêuticas e grandes centros de diagnóstico. É tão nítido que saúde para muitos brasileiros significa ter acesso ao médico, que o atual governo usou dessa premissa para criar o programa Mais Médicos: levar médico a populações que não têm acesso, como se isso lhes garantisse saúde. É mais simples  e tem mais visibilidade na mídia do que levar desenvolvimento econômico, educação, cultura, lazer etc. – o que muito  lhes falta.

O fato de o médico ter um produto incrivelmente almejado pela população – seu próprio tempo – e uma palavra que vale como lei conferem a ele um status diferente de qualquer outra profissão – com isso, quero dizer poder social e econômico. Possui salários altos sem muita razão de ser, o que, além de desvalorizar outros  profissionais da área da saúde, reduz o cuidado do indivíduo com sua própria saúde ao seu poder de compra. Seguindo o raciocínio: se saúde é ter acesso ao médico, e o médico pode ser pago por quem tem dinheiro, temos a sensação ilusória de que saúde é um bem de consumo e, portanto, pode ser comprada. Isso, aliado à ascensão econômica do País, criação dos convênios, propagandas de remédios e exames cada vez mais modernos, faz com que se crie a falsa sensação de que muito pode ser feito para prevenir a doença e adiar a morte. Engana-se, contudo, aquele que acredita que pagando os médicos mais caros, os remédios importados e fazendo os exames mais modernos vai passar mais longe da morte.

O resultado desse conceito invertido de saúde tem significado o excesso de consultas médicas, medicalização de processos naturais da vida e exames desnecessários. Porque é isso que o médico aprende na universidade: a lidar com doença, pedir exames e prescrever medicamentos. Quando pessoas saudáveis o procuram achando estar doentes ou precisar do médico, ele se atrapalha. Não sabe lidar com os problemas naturais da vida nem dizer que talvez esse não seja um problema que precise de médico. Seu poder social lhe ensinou a “ser necessário”.

O conceito de prevenção quaternária, muito estudado por médicos de família mundo afora, só foi criado justamente devido a esse cenário de medicalização da vida e do médico como sinônimo de saúde. Prevenção quaternária é proteger a população do excesso da medicina e lidar com mais naturalidade com problemas do ciclo de vida. É incrível que isso finalmente esteja acontecendo, mas até que ponto não estamos mais uma vez reforçando a necessidade do médico para se ter saúde – as pessoas precisam desse tipo de médico para protegê-las dos outros médicos?

Enquanto essa discussão ficar apenas dentro dos limites da medicina, será mais um ponto divergente entre médicos de família e comunidade e especialistas, reforçando mais uma vez o elitismo, o  poder social e econômico do médico. É preciso trazer a limitação da medicina e a discussão de conceitos de saúde à baila para essa população que busca cada vez mais respostas que a ciência ainda não respondeu. Minimizar os riscos talvez seja diminuir os encontros com o médico e aumentar os encontros com os amigos, os familiares, o mar ou os prazeres da vida de cada um.

A reflexão que venho fazendo é: se acreditamos que saúde não significa ter acesso ao médico, mas sim talvez ter "a capacidade de satisfazer suas necessidades e a potencialidade de ir atrás de seus desejos", como um amigo sabiamente me disse, o que podemos fazer de concreto pela saúde dessa população – que também nos inclui – para além das quatro paredes dos nossos consultórios? Que tal após o Outubro Rosa e o Novembro Azul, o Dezembro sem Médico?

Marina P. Galhardi
Médica de Família e Comunidade do Centro de Saúde (CS) de Saco Grande
Florianópolis – SC