Como funciona a organização dos serviços de saúde indígena no Brasil

7 de fevereiro de 2018

 

Com foco no Dia Nacional de Luta pelos Povos Indígenas, datado em 7 de fevereiro, a SBMFC orienta sobre o funcionamento da organização dos serviços de saúde indígena no Brasil. O material foi produzido por Magda Almeida, Diretora de Saúde Rural e Coordenadora do Grupo de Trabalho de Saúde Rural da SBMFC, professora da Universidade Federal do Ceará e Karine Kersting Puls, residente de medicina de família e comunidade do Grupo Hospitalar Conceição, integrante do GT de Saúde Rural da SBMFC e membro do Rural Seeds.

A Secretaria Especial de Saúde Indígena (SESAI) é a área do Ministério da Saúde, responsável por coordenar a Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas e todo o processo de gestão do Subsistema de Atenção à Saúde Indígena (SASISUS), no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS) em todo o território nacional. Seu surgimento originou-se da necessidade de reformulação da gestão da saúde indígena no país, demanda essa reivindicada pelos próprios indígenas durante as Conferências Nacionais de Saúde Indígena.

Sua principal missão está relacionada ao exercício da gestão da saúde indígena, no sentido de proteger, promover e recuperar a saúde dos povos indígenas, bem como orientar o desenvolvimento das ações de atenção integral à saúde indígena e de educação em saúde segundo as peculiaridades, o perfil epidemiológico e a condição sanitária de cada Distrito Sanitário Especial Indígena (DSEI).

O DSEI se baseia em um modelo de gestão e de atenção descentralizado, com autonomia administrativa, orçamentária, financeira e com responsabilidade sanitária.

Em termos quantitativos, tais competências se materializam no atendimento de 738.624 indígenas que compõem aproximadamente mais de 170.000 famílias residentes em 5.361 aldeias, segundo os dados do Sistema de Informação da Atenção à Saúde Indígena – SIASI, pertencentes a 305 etnias, que falam 274 línguas distintas. Cada povo com os seus costumes, as suas tradições, religiões e modos de organização social próprios, e, de acordo com a Fundação Nacional do Índio encontram-se dispersos numa extensão territorial indígena de 1.135.182,35 km2.

A organização de responsabilidade sanitária também não é o município, mas o DSEI, que podem agregar vários municípios e inclusive unidades federativas diferentes. Os territórios foram definidos num processo de construção com as comunidades indígenas, profissionais e instituições de saúde. A definição destas áreas é pautada não apenas por critérios técnico-operacionais e geográficos, mas respeitando também a cultura, as relações políticas e a distribuição demográfica tradicional dos povos indígenas, o que necessariamente não coincide com os limites de Estados e/ou Municípios onde estão localizadas as terras indígenas.

A estrutura de atendimento nos DSEI conta com postos de saúde, com os Polos-base e as Casas de Saúde Indígena (Casais). A rede de serviços tem como base de organização serviços de saúde nas aldeias que contam com a atuação do Agente Indígena de Saúde (AIS) com atividades vinculadas a um posto de saúde. Esses postos de saúde tem uma estrutura física simplificada de cerca de 30m2. Os médicos presentes nos DSEIS fazem trabalho itinerante em várias aldeias, e a maioria deles é vinculado ao Programa Mais Médicos. O trabalho da atenção básica fica sob responsabilidade na maior parte do tempo do AIS que tem como competências:

·         Acompanhamento de crescimento e desenvolvimento;

·         Acompanhamento de gestantes;

·       Atendimento aos casos de doenças mais frequentes (infecção respiratória, diarréia, malária);

·         Acompanhamento de pacientes crônicos;

·         Primeiros socorros;

·         Promoção à saúde e prevenção de doenças de maior prevalência;

·         Acompanhamento da vacinação;

·         Acompanhar e supervisionar tratamentos de longa duração.

Os Pólos-Base se constituem na primeira referência para os AIS que atuam nas aldeias. Podem estar localizados numa comunidade indígena ou num município de referência, neste último caso correspondendo a uma unidade básica de saúde já existente na rede de serviço daquele município. São o equivalente às Unidades Básicas de Saúde na Estratégia de Saúde da Família e contam com atuação de Equipe Multidisciplinar de Saúde Indígena (EMSI), composta principalmente por Médico, Enfermeiro, Dentista e Auxiliar de Enfermagem.

Existem dois tipos, que são classificados de acordo com a complexidade de ações que fornece:

  • Polo Base I: localização em terras indígenas; capacitação, reciclagem e supervisão dos Agentes Indígenas de Saúde (AIS) e auxiliares de enfermagem; coleta de material para exame; esterilização; imunizações (quando se tratar de atividades de rotina); coleta e análise sistêmica de dados; investigação epidemiológica; prevenção de câncer ginecológico (exame/coleta/consulta).

  • Polo Base II: localiza-se no município de referência; estrutura física é de apoio técnico e administrativo à Equipe Multidisciplinar; armazenamento de medicamentos; armazenamento de material de deslocamento para outras áreas indígenas; comunicação via rádio; investigação epidemiológica; elaboração de relatórios de campo e sistema de informação; coleta, análise e sistematização de dados; planejamento das ações das equipes multidisciplinares na área de abrangência; organização do processo de vacinação na área de abrangência; administração.

As demandas que superam a capacidade de resolução no nível dos Pólos-Base são direcionadas para uma rede já pactuada previamente, seja em serviço especializado na sede do próprio município ou no mais próximo, hospital de pequeno porte ou hospitais de médio e grande porte, a depender da complexidade do caso. Importante destacar que essa rede recebe incentivo por meio de diferenciação de financiamento pela SAS/MS, o que pode corresponder a até 30% a mais do que pelo atendimento prestado aos pacientes não indígenas.

As Casas de Saúde do Índio (Casais) são locais de recepção e apoio ao índio, que vem referenciado da aldeia/Pólo-Base. Localizadas em municípios de referência tem como função facilitarem o acesso da população indígena ao atendimento secundário e/ou terciário, servindo de apoio entre a aldeia e a rede de serviços do SUS, através de:

·         mecanismos de referência e contra-referência com a rede do SUS;

·         serviço de tradução para os que não falam português;

·     realização de contra-referência com os Distritos Sanitários e articulando o retorno dos pacientes e acompanhantes aos seus domicílios, por ocasião da alta;

·   recebimento de pacientes e seus acompanhantes encaminhados pelos DSEI;

·   fornecimento de alojamento e alimentação dos pacientes e seus acompanhantes, durante o período de tratamento;

·       prestação da assistência de enfermagem aos pacientes pós-hospitalização e em fase de recuperação;

·    acompanhamento dos pacientes para consultas, exames subsidiários e internações hospitalares;

 

Sobre a necessidade de especialização para atuar com essa população, as Equipes Multidisciplinares de Saúde Indígena são submetidas, previamente, ao Treinamento Introdutório que contempla conceitos antropológicos, análise do perfil epidemiológico da região e capacitação pedagógica que as habilite a executarem a formação dos Agentes Indígenas de Saúde.

Existe um processo seletivo para a saúde indígena gerenciado pela SPDM – Associação Paulista Para o Desenvolvimento da Medicina. Apesar de não haver exigência de especialização como pré-requisito, exige-se pelo menos 06 meses de experiência comprovada na área de atuação ou em qualquer área da saúde indígena – exceto para os indígenas.

Algumas vagas disponíveis podem ser encontradas via internet no sítio: http://www.saudeindigena.spdm.org.br/vagas/. Geralmente a seleção dos profissionais de saúde é feita em quatro ou cinco etapas de acordo com o cargo, e a prova somente é obrigatória aos cargos de cirurgião dentista, enfermeiro, técnico de enfermagem e assistente social. Para o nordeste, o Instituto de Medicina Integral Professor Fernando Figueira – IMIP, também organiza editais de seleção divulgados através do sítio: www.imip.org.br.

O médico que for trabalhar com essa população precisa saber que a competência cultural e humildade será fundamental nesse contexto. Cada um destes 305 povos tem sua própria maneira de entender e se organizar diante do mundo, que se manifesta nas suas diferentes formas de organização social, política, econômica e de relação com o meio ambiente e ocupação de seu território. O reconhecimento da diversidade social e cultural dos povos indígenas, a consideração e o respeito dos seus sistemas tradicionais de saúde são imprescindíveis para a execução de ações e projetos de saúde e para a elaboração de propostas de prevenção/promoção e educação para a saúde adequadas ao contexto local.

 

O princípio que permeia todas as diretrizes da Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas é o respeito às concepções, valores e práticas relativos ao processo saúde-doença próprios a cada sociedade indígena e a seus diversos especialistas. A articulação com esses saberes e práticas deve ser estimulada para a obtenção da melhoria do estado de saúde dos povos indígenas. O ideal é que o médico possa ter tido uma experiência anterior durante a graduação, ou até mesmo na residência.

Doenças típicas e com maior incidência

Embora precários, os dados disponíveis indicam, em diversas situações, taxas de morbidade e mortalidade três a quatro vezes maiores quando comparadas com a população brasileira em geral. O alto número de óbitos sem registro ou indexados sem causas definidas confirmam a pouca cobertura e a baixa capacidade de resolução dos serviços disponíveis.

Em relação à morbidade, verifica-se uma alta incidência de infecções respiratórias e gastrointestinais agudas, malária, tuberculose, doenças sexualmente transmissíveis, desnutrição e doenças preveníveis por vacinas, evidenciando um quadro sanitário caracterizado pela alta ocorrência de agravos que poderiam ser significativamente reduzidos com o estabelecimento de ações sistemáticas e continuadas de atenção básica à saúde no interior das áreas indígenas.

Em algumas regiões, onde a população indígena tem um relacionamento mais estreito com a população regional, nota-se o aparecimento de novos problemas de saúde relacionados às mudanças introduzidas no seu modo de vida e, especialmente, na alimentação: a hipertensão arterial, o diabetes, o câncer, o alcoolismo, a depressão e o suicídio são problemas cada vez mais frequentes em diversas comunidades.

Os transtornos mentais também têm chamado a atenção. O uso abusivo de álcool, a depressão e o suicídio são problemas cada vez mais frequentes em diversas comunidades. A taxa de mortalidade por suicídio entre indígenas é quase o triplo da média nacional. Enquanto o Brasil registra 5,7 óbitos a cada 100 mil habitantes, o índice é de 15,2 na população indígena, sendo 44,8% das mortes ocorridas na faixa etária de 10 a 19 anos, ao contrário do panorama geral, em que os adultos de 20 a 39 anos respondem pela maior proporção dos registros.

Aceitação de intervenções médicas versus culturais

Todas as sociedades humanas dispõem de seus próprios sistemas de interpretação, prevenção e de tratamento das doenças. Esses sistemas tradicionais de saúde são, ainda hoje, o principal recurso de atenção à saúde da população indígena, apesar da presença de estruturas de saúde ocidentais. Sendo parte integrante da cultura, esses sistemas condicionam a relação dos indivíduos com a saúde e a doença e influem na relação com os serviços e os profissionais de saúde (procura ou não dos serviços de saúde, aceitabilidade das ações e projetos de saúde, compreensão das mensagens de educação para a saúde) e na interpretação dos casos de doenças.

Os sistemas tradicionais indígenas de saúde são baseados em uma abordagem holística de saúde, cujo princípio é a harmonia de indivíduos, famílias e comunidades com o universo que os rodeia. As práticas de cura respondem a uma lógica interna de cada comunidade indígena e são o produto de sua relação particular com o mundo espiritual e os seres do ambiente em que vivem.

Geralmente, o índio doente passa primeiro com o pajé, que indica e realiza a conduta que julga apropriada, como tratamento com ervas, banhos ou fumaça. Ele também orienta se a doença é “de branco” ou “doença de índio”, voltada mais para o lado espiritual, do pensamento mágico-religioso.

Quando a doença é “de branco”, o paciente faz o tratamento com a equipe da UBS, mas mantém o tratamento concomitante com o pajé. Sendo parte integrante da cultura, esses sistemas condicionam a relação dos indivíduos com a saúde e a doença e influem na relação com os serviços e os profissionais de saúde (procura ou não dos serviços de saúde, aceitabilidade das ações e projetos de saúde, compreensão das mensagens de educação para a saúde) e na interpretação dos casos de doenças.

O trabalho do médico ocidental deve ir no sentido de complementar e não suplementar a medicina tradicional indígena, o entendimento de um sistema de autonomia mais coletiva que individual, ajuda o médico ocidental a entender esse sistema.

Exercício médico em áreas isoladas

Uma das características desses médicos é o relativo isolamento geográfico  e profissional, uma vez que o médico que trabalha em comunidades indígenas isoladas estará a quilômetros de distância de outro serviço de saúde médico. Sendo assim, precisa desenvolver habilidades como interpretação de exames e, realização de procedimentos que seriam normalmente encaminhados para outros profissionais em grandes cidades e saber o manejo inicial de algumas emergências. O isolamento mesmo que relativo com equipes menores e recursos restritos torna o trabalho em equipe e a interdisciplinaridade ainda mais importantes.

Além disso, em comunidades indígenas isoladas em zonas rurais e remotas, a competência cultural se torna ainda mais importante. Sendo assim, um médico que decide trabalhar nessa situação de isolamento precisa ser muitas vezes criativo para lidar com as adversidades e a falta de recursos, precisa desenvolver competências específicas, ter treinamento de habilidades específicas para ser mais resolutivo. Além disso, precisa estar mais aberto para lidar com as diferenças e com as crenças culturais da comunidade em que se encontra.

Referências:

http://portalms.saude.gov.br/saude-indigena/gestao/siasi

Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas (acesso em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/politica_saude_indigena.pdf)

Relatório de Gestão do Exercício de 2016 – Ministério da saúde – Secretaria Especial de Saúde Indígena (acesso em: http://portalarquivos.saude.gov.br/images/pdf/2017/abril/26/RG-SESAI-2016-Versao-Final.pdf)