SBMFC entrevista Joana Carvalho, Rita Helena Borret, Amanda Arlete: vamos falar sobre saúde da população negra?

14 de setembro de 2018

 Entrevista concedida por Joana Carvalho, Rita Helena Borret, Amanda Arlete, coordenadoras do GT de Saúde da População Negra da SBMFC

SBMFC: A formação médica ensina a atender pacientes de acordo com a sua origem étnico-racial?

GT Saúde da pop. Negra: Infelizmente não ensina, embora abordar à saúde da população negra esteja presente nas diretrizes curriculares nacionais de medicina de 2014, expresso no texto “o graduando será formado para considerar sempre as dimensões da diversidade biológica, subjetiva, étnico-racial, de gênero, orientação sexual, socioeconômica, política, ambiental, cultural, ética e demais aspectos que compõem o espectro da diversidade humana que singularizam cada pessoa ou cada grupo social(…)”.

O próprio conceito de raça como um determinante socialmente construído é contestado pelos professores, pois biologicamente “não existe raça”. Na prática, se aborda de forma muito sutil questões como a Anemia Falciforme, mas a raça como um determinante social e as relações do racismo com a prática médica raramente são abordadas na graduação e na residência médica, como mostra o artigo de Camilla Matos e colaboradores, “Saúde da População Negra: percepção de residentes e preceptores de Saúde da Família e Medicina de Família e Comunidade.”

 SBMFC:  Como um médico pode se preparar para atender as demandas da população negra?

 GT Saúde da pop. Negra:  Em primeira análise, para compreender as demandas da população negra é preciso resgatar a memória da história afro-brasileira, desde a escravização dos povos africanos, passando pela “abolição” que não garantiu nenhum direito trabalhista e não inseriu os negros no mercado de trabalho e no sistema educacional até os dias de hoje. É preciso entender esse processo social como um determinante do adoecimento, os porquês da população negra estar majoritariamente nas periferias do país em condições de pobreza, exclusão social, vivenciando o racismo no cotidiano.

Compreender os diferentes tipos de racismo, leia-se racismo institucional, racismo interpessoal e racismo internalizado é outro ponto importante para entender e relevância do tema mas, principalmente, para não reproduzir as formas de racismo no consultório e nos serviços de saúde, tornando este um ambiente menos opressor e mais acolhedor as demandas específicas de saúde da população negra.

 SBMFC:  Quais são as doenças mais frequentes na população negra?

GT Saúde da pop. Negra:  Quando falamos de doenças mais frequentes na população negra, a maioria dos profissionais de saúde pensa na hipertensão, pré-eclampsia e anemia falciforme, mas precisamos encarar o racismo como determinante social em saúde, ou seja, o racismo adoece. E viver o racismo adoece tanto psiquicamente quando fisicamente, pois negligenciar o tratamento adequado de hipertensão, pré-eclâmpsia ou anemia falciforme, por exemplo, é uma forma de racismo institucional. A Política Nacional de Saúde Integral da População Negra (PNSIPN) de 2017 cita algumas doenças genéticas e hereditárias agravadas pela pobreza, desnutrição e acesso à saúde e educação e por todos esses motivos, mais comuns da população negra, que são: anemia falciforme, diabetes mellitus tipo 2, hipertensão arterial e deficiência de glicose-6-fosfato desidrogenase.

SBMFC:  A taxa de mortalidade maternidade em mulheres negras é a mais alta do país. Quais são as justificativas? E como seria a prevenção ideal?

GT Saúde da pop. Negra: O racismo, nas suas mais diversas formas, em especial o racismo institucional, é o que explica esta situação. Entre suas várias facetas no campo da saúde estão o atendimento diferenciado, menor tempo de consulta, menor explicação, menos anestesia oferecida no parto e maior violência obstétrica provocados por profissionais de saúde para com pacientes negros. Motivo esse que não só aumenta a taxa de mortalidade materna em negras, como faz com que a maioria dos outros indicadores em saúde sejam piores na população negra. O artigo A cor da dor: iniquidades raciais na atenção pré-natal e ao parto no Brasil, de Maria do Carmo Leal e colaboradores, que analisou dados oriundos da pesquisa Nascer no Brasil: Pesquisa Nacional sobre Parto e Nascimento, estudo de base populacional de abrangência nacional, identificou que mulheres negras e pardas, quando comparadas a mulheres brancas, têm um maior risco de pré-natal inadequado e ausência de acompanhante. Comparando puérperas negras com brancas observou-se ainda maior risco de falta de vinculação à maternidade, peregrinação para o parto e menos anestesia local para episiotomia. O estudo identificou disparidades raciais no processo de atenção à gestação e ao parto, que evidencia um gradiente de pior para melhor cuidado entre mulheres pretas, pardas e brancas.

A prevenção é o combate ao racismo institucional. Por isso, a real implantação da PNSIPN é importante, sua marca é: “o reconhecimento do racismo, das desigualdades étnico-raciais e do racismo institucional como determinantes sociais das condições de saúde, com vistas à promoção da equidade em saúde. Seu objetivo é promover a saúde integral população negra, priorizando a redução das desigualdades étnico-raciais, o combate ao racismo e à discriminação nas instituições e nos serviços do SUS”.

 SBMFC: Além do acesso à saúde ser mais difícil, quais tipos preconceito a população negra sofre nas unidades e hospitais?

GT Saúde da pop. Negra: Como citado anteriormente, o racismo institucional é a principal barreira para o acesso adequado a saúde. Racismo institucional ou estrutural é definido como qualquer forma de racismo que ocorre dentro de instituições como órgãos governamentais, instituições públicas, empresas, corporações e universidades, pode ser entre gestor e trabalhador, trabalhador e trabalhador, trabalhador e usuário, usuário e trabalhador. São atitudes sociais específicas inerentes à ação preconceituosa racialmente, à discriminação, aos estereótipos, à omissão, ao desrespeito, à desconfiança, à desvalorização e à desumanização.

Segundo Jones, o racismo que é algo estrutural, se apresenta nas relações sociais de três formas: o racismo institucional, o racismo interpessoal e o racismo internalizado. No momento que uma pessoa negra procura atendimento em uma instituição de saúde, destacamos o racismo institucional como a principal questão a ser enfrentada, mas as outras formas de apresentação do racismo podem também estar presentes. O racismo interpessoal se traduz por ações ou omissões na relações entre indivíduos, que são ou não tomadas a partir de ideias ou julgamentos que têm relação com a raça/cor, tais como falta de respeito, desumanização, negligência, etc. Ao frequentar hospitais ou unidades de saúde, as pessoas negras enfrentam situações deste tipo, na relação com os indivíduos que ali trabalham.

SBMFC: Qual o impacto da desigualdade social e econômica na saúde da população negra?

GT Saúde da pop. Negra:  Quando olhamos os dados sobre a população mais pobre do Brasil, essa é composta em sua maioria por indivíduos negros. A história da população negra no Brasil, desde a época da escravização até os dias atuais justifica esse cenário. As desigualdades sociais e econômicas, juntamente com o racismo, atuam de forma conjunta e sinérgica, de forma que estes indivíduos apresentam piores condições de saúde. Em diversos momentos, por a população negra ser também a mais pobre, as justificativas para as piores condições de saúde ficavam restritas às questões sociais e econômicas. Entretanto, quando comparamos indivíduos da mesma classe social, os negros apresentam mais riscos e piores condições de saúde, o que demonstra que o racismo é um determinante social de saúde independente da questão econômica. É importante reconhecer que a população pobre ser majoritariamente negra é reflexo do racismo estrutural em que nossa sociedade se constituiu.

SBMFC: Existe alguma política pública que facilita o acesso e atendimento? Caso não, qual seria a ideal?

GT Saúde da pop. Negra:  Temos a PNSIPN que foi instituída em 2009 pelo Ministério da Saúde, a idéia central é promover a equidade em saúde, orientado pelos princípios e diretrizes da integralidade, equidade, universalidade e participação social, em consonância com o Pacto pela Saúde e a Política Nacional de Gestão Estratégica e Participativa no SUS. A marca dessa política é o combate ao racismo institucional, assim, precisamos que essa política seja implantada em cada unidade de saúde do país.

SBMFC: Quando um médico se depara com caso de racismo na unidade praticado por um colega, como deve proceder?

GT Saúde da pop. Negra:  Nesse caso, é importante dizer que não fazer nada é uma maneira de reproduzir o racismo interpessoal. Toda negligência a uma situação de racismo serve para perpetuar o mesmo. Existem duas maneiras de agir. Uma delas, talvez preferencial, seja a de acolher o colega, explicitar o ocorrido e estimulá-lo a refletir e mudar sua ação diante do cenário. Um outro caminho possível é o da denúncia, que talvez não deva ser usado como primeira abordagem, mas na repetição de situações, é necessário. Em todas as duas possibilidades de ação, é fundamental acolher a vítima de racismo e lhe oferecer a possibilidade de ser acompanhado por outro profissional de saúde mais capacitado e com quem possa estabelecer vínculo de confiança para garantir o cuidado.

SBMFC: Sobre a violência: a população negra é a que mais sofre violência, como um médico precisa lidar com essa sensação de insegurança que também reflete nas consultas médicas?

GT Saúde da pop. Negra: O médico deve estar preparado para lidar com a insegurança, e com os diversos tipos de sofrimento que o racismo pode causar nas pessoas negras. O racismo, como fator que produz estresse crônico a essa população, está associado a sofrimento psíquico em diversos níveis. Desta forma, é fundamental que o médico, diante de um paciente negro com sintomas de sofrimento psíquico, suspeite e explore as desigualdades raciais e o racismo como elementos que podem estar contribuindo ou serem a causa dessa situação. No caso do médico de família e comunidade, faz parte de seu método de investigação e abordagem das questões de saúde, a utilização do método clínico centrado na pessoa. Tendo esta ferramenta como orientadora desta abordagem, fica clara a necessidade de explorar a questão racial como um dos elementos que caracterizam a experiência de adoecimento desta pessoa, e a abordagem precisa ser adequada ao desejo da pessoa de enfrentar essa questão, não devendo o médico propor ou insistir em condutas que não façam sentido, ou que a pessoa não deseje ou não esteja preparada. O médico pode, de formas diversas, contribuir para o enfrentamento do racismo na sua prática profissional. No caso do médico de família e comunidade, isso engloba ações individuais, abordagem familiar, atividades em grupo, ações na comunidade, em outros serviços e estabelecimentos do seu território de atuação. O fundamental é estar atento e atuar de forma crítica e comprometida em relação ao racismo e suas consequências. É necessário que este tema esteja presente na formação dos profissionais de saúde, para que os mesmos sejam melhor preparados para lidar com esta questão na sua prática profissional. – Deseja acrescentar mais informações?

 SBMFC: Por que o GT foi formado?

 GT Saúde da pop. Negra: A formação do grupo de trabalho ocorreu em algumas etapas. Num primeiro momento, durante o WONCA 2016 no Rio de Janeiro, em conjunto com estudantes do coletivo Negrex, algumas pessoas perceberam a ausência de discussões que pautassem o racismo como determinante social em saúde. No congresso subsequente, um grupo de pessoas se articulou para propor mesas e oficinas que trouxessem em seu escopo a pauta raça/cor e, nesse cenário, a percepção da falta dessa discussão em todos os espaços estimulou a organização das pessoas em um GT de Trabalho que pudesse trocar informações e estimular pesquisa e debates sobre a saúde da população negra dentro da atenção primária e para os médicos de família e comunidade. Ainda é necessária a construção de muitos saberes no campo de saúde da população negra e combate ao racismo institucional. O GT tem a missão de entender o papel do MFC nesse cenário e estimular as práticas em saúde visando o combate ao racismo institucional.

SBMFC: Quais são as atividades cotidianas?

GT Saúde da pop. Negra: Compartilhamento de materiais teóricos sobre saúde da população negra, produção de atividades para debater a prática em mfc considerando aspectos de saúde da população negra e de combate ao racismo institucional.

SBMFC: Quais são as atividades/eventos/participação em congressos para 2018?

GT Saúde da pop. Negra: Esse ano desenvolvemos uma atividade em julho no Rio de Janeiro, com ênfase ao cuidado das Mulheres Negras na APS. Participaremos de atividades no I Congresso Sudeste de Medicina de Família e Comunidade, em São Paulo em outubro, no VI Congresso Sul-Brasileiro de Medicina de Família e Comunidade, em Florianópolis em novembro e IV Congresso Nordestino de Medicina de Família e Comunidade, em Maceió, em novembro.

SBMFC: Para se inscrever, como o membro da SBMFC pode acionar as coordenadoras?

GT Saúde da pop. Negra: Para ser membro do GT é preciso ser sócio adimplente da SBMFC. Quem desejar pode enviar email para gtsaudepopnegramfc@gmail.com

SBMFC: Quer indicar literatura e materiais de estudos sobre a saúde da população negra?

Política Nacional de Saúde Integral da População Negra. Ministério da Saúde. Brasília – DF. 2017.

Saúde da população negra. Coleção negras e negros: pesquisas e debates. Luís Eduardo Batista, Jurema Werneck e Fernanda Lopes. 2 ed. 2012.

WERNECK, Jurema. Racismo institucional e saúde da população negra. Saúde Soc. São Paulo, v.25, n.3, p.535-549, 2016. Disponível em:http://www.scielo.br/pdf/sausoc/v25n3/1984-0470-sausoc-25-03-00535.pdf. Acesso em: 14 set. 2018.

LEAL, Maria do Carmo; GAMA, Silvana Granado Nogueira; PEREIRA, Ana Paula Esteves; PACHECO, Vanessa Eufrauzino; CARMO, Cleber Nascimento; SANTOS, Ricardo Ventura. A cor da dor: iniquidades raciais na atenção pré-natal e ao parto no Brasil. Cadernos de Saúde Pública. 2017.

MATOS, Camila Carvalho de Souza Amorim; TOURINHO, Francis Solange Vieira. Saúde da População Negra: percepção de residentes e preceptores de Saúde da Família e Medicina de Família e Comunidade. Revista Brasileira de Medicina de Família e Comunidade, [S.l.], v. 13, n. 40, p. 1-12, jun. 2018. ISSN 2179-7994. Disponível em:<https://www.rbmfc.org.br/rbmfc/article/view/1712. Acesso em: 14 set. 2018.