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Artigo traduzido: O Amor em tempos de coronavírus

11 de maio de 2020

Na crise definidora dos nossos tempos, uma coisa permeia ações, Decisões, políticas, e Serviços de Saúde: o amor.

por Iona Heath – Médica de Atenção Primária Aposentada, London / UK – contato: iona.heath22@yahoo.com.uk

 

Traduzido por Rogerio Luz Coelho – MFC, membro da SBMFC e APRMFC – contato: dr.rogerioluzcoelho@gmail.com

 

Título Original : Love in time of coronavirus  

Original em inglês disponível em : https://www.bmj.com/content/369/bmj.m1801

 

O livro de 1995 de John Berger “O dia do Casamento” (Ed. Rocco) foi escrito em resposta aos horrores da epidemia de AIDS, que tinha uma letalidade muito maior que a COVID-19,  e um perfil de idade afetando crianças e jovens adultos desproporcionalmente. respondendo aquela primeira década da epidemia de AIDS Berg escreve:

Estamos vivendo na beirada, e isso é difícil porque nós perdemos o hábito. Antigamente todo mundo, velhos e jovens, ricos e pobres, entendiam isso como normal. A vida era dolorosa e precária. A sorte era cruel.

Os privilegiados habitantes dos países ricos do mundo haviam perdido a sua familiaridade dolorosa com as arbitrariedades da morte. 

Por dois séculos nós acreditamos que a história é uma estrada expressa que nos leva a um futuro que ninguém havia conhecido antes. Nós pensamos que éramos isentos… agora as pessoas vivem para ser muito mais velhas. Já existem anestésicos. Nós pousamos na lua… Nós aplicamos a razão a tudo. Nós perdoamos ao passado seus erros porque eles aconteceram na Idade das Trevas. Agora, de repente nós nos achamos longe daquela estrada, empoleirados como araus na borda de um despenhadeiro no escuro. 

Lá atrás nos anos 80 e 90 minorias estigmatizadas eram empoleirados na borda do desfiladeiro. Hoje, todos estamos, embora o vírus atual parece particularmente habilidoso em explorar todas as dimensões das desvantagens pré-existentes, sistematicamente escolhendo as pessoas que são pobres, velhas, ou encarceradas, que vivem em condições super populosas ou são de comunidades negras ou de minorias étnicas. 

Antes da AIDS, Ebola, SARS e agora COVID-19; eram tuberculose, peste, Cólera, tifo e influenza que cortavam grandes faixas através das populações do mundo. Empoleirar-se como araus na beirada do penhasco é, historicamente, a situação normal da humanidade, mas havíamos esquecido. 

Nos países mais ricos nos esquecemos do poder das infecções de flagelar a humanidade e começamos a nos achar merecedores da saúde. As infecções estavam reivindicando cada vez menos vidas, mesmo que continuassem sendo a principal causa de morte prematura na África. Mais e mais pessoas estavam vivendo o suficiente para morrer de doenças não comunicantes, por isso atenção estava focada nelas. No entanto, mesmo que o número crescente de pessoas que morrem de doenças não comunicantes em países mais pobres morram mais cedo que aquelas nos países ricos, ainda morrem mais velhos do que as que morrem de infecções.

Nós, de alguma forma, nos permitimos esquecer que todo mundo deve morrer e aqueles que são sortudos o suficiente para morrer em uma idade mais avançada vão, quase certamente, morrer com uma ou mais doenças não comunicantes. Nós começamos a acreditar que temos direito a uma vida longa e saudável e que qualquer desvio disso deve representar alguma forma de negligência. Ainda que todos vão morrer, e como disse Philip larkin “o que nos sobreviverá será o amor “.

 

Austeridade e o atrito do amor

A criação idealista de, em sua maioria, estados de bem-estar social robustos em toda a Europa após a Segunda Guerra Mundial pode ser vista como uma expressão de amor para o todo da humanidade. Nenhuma pessoa deveria ser excluída, e nenhuma pessoa deveria ser colocada em risco. Mas a validade disso nunca foi aceita por todos no espectro político.

Após a crise financeira global de 2008, pessoas que eram ideologicamente opostas a solidariedade social  se aproveitaram da situação para reduzir investimentos através de políticas de austeridade. No Reino Unido e vários outros países, gastos em quase todos os aspectos de solidariedade social foram reduzidos: o número de enfermeiras e médicos caiu, leitos hospitalares desapareceram, sistemas locais de auxílio social foram  eviscerados, houveram cortes em todos os serviços de emergência. Isso nos deixou com serviços esqueléticos, sem reserva para lidar com a atual crise de ressurgimento de infecção.

Particularmente relevante foi a destruição de sistemas locais de saúde ambiental e pública que haviam sido tradicionalmente a linha de defesa contra surtos de infecção,  através de testes, isolamento, e monitoramento de contatos.  Funcionários de saúde alertaram os políticos; repetidamente e  cada vez mais desesperadamente; sobre recursos inadequados, redução do número de funcionários nos serviços e o completo despreparo para qualquer nova crise.

Em 2020, todas as galinhas voltaram para casa para chocar a combinação fatal de descrença, despreparo e  simplesmente desimportância que nasce da arrogância e do privilégio. Apesar de repetidos avisos, dos especialistas em doenças infecciosas, de que uma outra pandemia global era inevitável, os governos falharam em reconhecer o risco. Essa falta de reconhecimento foi somada a uma falta de preparo que o governo do Reino Unido, permitindo que os insumos estocados se tornassem obsoletos, falhou em assegurar material de testagem suficiente e equipamentos de proteção adequados.

Além disso, no atual contexto de otimismo militar machista sobre a criação de uma vacina efetiva, nós devemos lembrar que demorou quase uma década para que se produzisse um agente antiviral efetivo para AIDS, mas lá em 1984, quando o retrovírus da imunodeficiência humana foi identificado, havia esperança que a vacina poderia ser produzida em 2 anos. Ainda não existe essa vacina.

 

O trabalho do amor

Nesse momento, quando estamos dando o nosso respeito e gratidão aos serviços de saúde ao bater palmas nas quintas-feiras de noite, é importante lembrar que até recentemente, o NHS foi, repetidamente, castigado por se importar mais com a doença do que com a saúde. No entanto, neste momento, estamos desesperados por um serviço de doença eficiente e bem equipado, turbinado por assistência social compassiva.

O momento quando o primeiro-ministro britânico Boris Johnson publicamente reconheceu que a enfermagem em cuidados intensivos são atos de amor, pareceu uma epifania, mas pode ser muito a se esperar que essa epifania mude a sua atitude em relação ao amor inerente a tudo relacionado a solidariedade social.

Que não haja dúvida que aqueles que estão em risco de doença grave, e até a morte , por continuar a fazer trabalho emocionalmente e fisicamente extenuantes sem saber se eles mesmos os seus colegas já estão infectados, e sem equipamentos de proteção adequada,  são motivados pelo amor altruístico para com o todo da humanidade. Eu incluo aqui não apenas medicina, enfermagem e outros profissionais da saúde, mas também porteiros, trabalhadores na limpeza, garçons e garçonetes, manutenção de casas, transporte, entregadores, lojistas e repositores de mercado.  Cada um deles está vivendo a máxima de Franklin D. Roosevelt: “A coragem não é ausência de medo, mas sim a avaliação de que outra coisa é mais importante que o medo”. E essa outra coisa é o amor. 

O enorme comprometimento e coragem de imigrantes de primeira e segunda geração entre esses trabalhadores essenciais, e o número desproporcional de mortes por COVID-19 que eles sofreram, deveria fazer com que o nosso país inteiro se sentisse ainda mais envergonhado pelas décadas de racismo e atitudes anti Imigrantes hostis que, através de Windrush e até talvez Grenfell, culminaram com Brexit em Janeiro. 

 

O amor das pessoas mais velhas

 Nós todos sabemos que o COVID-19 afeta e mata pessoas mais velhas desproporcionalmente, talvez por causa das comorbidades, talvez por causa da imunossenescência. 

Muitas pessoas mais velhas, incluindo eu mesma, não querem ser internadas em hospitais muito mesmo morrer em um ventilador ou passar por ressuscitação cardiopulmonar, não queremos ser submetidos a tratamentos invasivos e estressantes com pouquíssimas chances de sucesso e certamente não queremos usar um ventilador que poderia ter mais sucesso em uma pessoa jovem ou ainda sujeitar os profissionais de saúde a uma maior exposição viral no procedimento de intubação.

 Profissionais de saúde podem sentir dificuldades ao obedecer a essas atitudes pelo medo prevalente de serem acusados de etarismo. Talvez a crise do coronavírus possa finalmente advogar um entendimento mútuo que a ordem de “não ressuscitar” não é uma sentença de morte ou desvalorizar uma vida, mas uma tentativa de garantir a dignidade no morrer. Quem gostaria de morrer com costelas quebradas e uma minúscula chance de uma ressuscitação bem sucedida, quando poderia morrer, pacificamente, em uma cama segurando a mão de quem eles mais amam?

Muitas pessoas mais velhas têm medo justificados de intervenções excessivas e não querem sobreviver a qualquer preço. Hospitais são lugares abarrotados, barulhentos, e intensamente estressantes. Nessa pandemia, eles se tornaram, adicionalmente, focos de infecção. Nós precisamos manter, urgentemente, os idosos frágeis em casa o máximo possível, se esse é o local onde eles querem estar. Para que isso seja possível, nós precisamos desenvolver suporte médico e social adicional  para as famílias que querem ajudar os seus idosos dessa forma. 

 

O amor e o morrer

As taxas chocantes de morrer pelo e com COVID-19 nos afeta a todos, e as implicações trágicas para os indivíduos e suas famílias nunca deveriam ser minimizadas. No entanto, a morte está sendo permitida substituir o amor em muitas formas.  O que quer que façamos, o quanto fizermos de lockdown, o quanto lavarmos nossas mãos, mesmo assim pessoas vão morrer. Nós não deveríamos estar sacrificando nossa humanidade ao enfrentar essa infecção. Banir as visitas está sendo imperdoavelmente pesado.

Vamos começar com o pressuposto de que ninguém deveria morrer de COVID-19 – ou de qualquer outra coisa – isolados daqueles que ama ou que lhe amam.  Se pudermos concordar com isso, podemos abordar o cuidado de pessoas gravemente doentes e uma perspectiva totalmente diferente. Um comprometimento assim com certeza não é acima da inteligência e dos recursos de uma nação: menos pessoas internadas em um hospital  e muito mais suporte disponível em casa e nas casas de repouso. Testando aqueles que querem estar com seus amados e isolamento físico depois de qualquer contato de risco. Sem isso,  companheiros de vida, parentes e  amigos Estão sendo privados da oportunidade de dizer adeus, de dizer as coisas cruciais que precisam ser ditas no final da vida.

O luto nessas circunstâncias se torna tão traumático quanto aquele causado por morte súbita nas guerras ou em desastres, e o legado da pandemia será incluir uma sucessão de lutos profundamente problemáticos acometendo os sobreviventes que não precisavam ser excluídos como eles foram naquele momento.  ninguém deveria ser forçado a morrer sozinho e ninguém deveria assumir o fardo de saber que ele deixar alguém que eles chamam morrer sozinho.

Mesmo no momento da morte, não há nada mais importante que o amor.

 

Biografia:

Iona Heath era uma médica de APS por 35 anos em Londres, e foi a presidente da Royal College of General Practitioners de 2009 a 2012. Ela escrevia uma coluna regular para o BMJ até 2013. 

Não há conflitos de interesse declarados. 

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