A SBMFC manifesta profunda preocupação diante da ausência da temática da saúde da população negra, da utilização do quesito raça/cor e da compreensão do racismo como marcador clínico, epidemiológico e social no Curso de Especialização em Medicina de Família e Comunidade do Programa Mais Médicos.
Essa lacuna pedagógica, evidente inclusive no Guia Prático de Apresentação de Caso Clínico, representa um grave retrocesso frente aos marcos legais e políticos que regem o SUS, como a Política Nacional de Saúde Integral da População Negra (PNSIPN) (Portaria nº 992/2009)¹ e a Portaria nº 344/2017², que determina o preenchimento obrigatório do quesito raça/cor em todos os sistemas de informação em saúde.
É fundamental reconhecer que a própria formação social do Brasil foi forjada a partir de um processo histórico de desumanização e exclusão. Um racismo estrutural que subjuga e invisibiliza povos indígenas e a população negra, trazida à força pela escravização e pela objetificação de corpos e subjetividades. Este racismo não é passado: segue escamoteado sob o mito da democracia racial, narrativa que insiste em negar as desigualdades no acesso a direitos, serviços e reconhecimento social.
Os dados epidemiológicos são contundentes: a população negra adoece e morre mais. Hipertensão, diabetes, obesidade, mortalidade materna e infantil, além de condições evitáveis, incidem de forma desproporcional sobre corpos negros. A ausência do marcador raça/cor na formação médica não é uma omissão neutra. Ela reforça essas iniquidades e perpetua o apagamento do racismo institucional como determinante central de adoecimento e morte.
Mesmo diante de vasta produção científica e da existência de políticas públicas que reconhecem os impactos do racismo na saúde, o Curso de Especialização em Medicina de Família e Comunidade do Programa Mais Médicos segue optando por não racializar sua formação, não problematizar o quesito raça/cor e não incluir dados raciais nos casos clínicos apresentados.
Em relação específica ao desenvolvimento de raciocínio clínico, uma série de estudos internacionais demonstram como o racismo afeta a capacidade técnica de realizar diagnósticos em saúde e de manejar processos de adoecimento. Em 2003, Geiger publicou uma revisão da evidência de disparidades raciais no diagnóstico e manejo de afecções como doenças coronarianas, neoplasias, isquemias, doenças renais e HIV/AIDS³. Especificamente sobre neoplasias, no corrente ano de 2025, o CDC publica documento que corrobora o fato de que pessoas negras são comumente diagnosticadas em estágios mais avançados da doença, tem uma sobrevida de 5 anos inferior a pessoas brancas e são a população que mais morre de câncer no mundo⁴. Em 2024, um artigo publicado no JAMA discute como pessoas negras têm menores chances de ter exames solicitados para investigação adequada de sintomas como náusea e vômito, dor abdominal, dor no peito e síncope em contextos de emergências⁵. No campo de doenças crônicas degenerativas, Harris et al⁶ apresentam pesquisa que evidencia que pessoas negras recebem um cuidado pior na Doença de Parkinson, tanto no atraso diagnóstico como no manejo do processo de adoecimento.
Em 2014, Schwartz RC e Blankenship, DM⁷, publicaram artigo que aponta o racismo como um importante marcador de subdiagnóstico e erro de diagnóstico em quadros psicóticos, com piores manejos e diagnósticos para pessoas negras. No mesmo caminho de piores cuidados em saúde mental, em 2023, Shalaby et al apresentam dados que demonstram que pessoas negras têm menor probabilidade e maior atraso no diagnóstico de Transtorno de déficit de atenção e hiperatividade em comparação com pessoas brancas⁸. Os exemplos apresentados acima servem apenas para ilustrar a importância do debate racial e de um olhar atento ao racismo no processo de adoecimento e cuidado em saúde, especialmente na Atenção Primária à Saúde.
A escolha pedagógica por não compreender o racismo como determinante no processo de adoecimento e cuidado fere normas nacionais, desconsidera a PNSIPN, contraria a Portaria nº 344/2017 e, sobretudo, reforça o pacto da branquitude e o mito da democracia racial. Reproduz-se, assim, o silêncio que protege os privilégios de uma minoria branca que, mesmo não sendo maioria entre os usuários do SUS, continua definindo os contornos da formação médica no país.
É importante enfatizar que o Programa Mais Médicos, segundo dados do Ministério da Saúde, apresenta cobertura para 77% do território nacional, inserindo-se em 1,7 mil cidades com altos índices de vulnerabilidade social, onde as múltiplas dimensões da violência racial se manifestam e estruturam as relações de saúde. Também é importante reforçar que a maioria da população brasileira, de acordo com o censo de 2022, é negra e que a maioria das pessoas que dependem exclusivamente do SUS é, também, negra¹.
O silenciamento do atravessamento racista em instrumentos formativos para médicas e médicos, é, em si, uma ação que naturaliza e leva adiante uma postura intencional de negação da experiência da racialidade como central para um cuidado integral pautado na construção de equidade; princípio norteador sob qual se apoia o programa em questão.
Formar profissionais da medicina sem uma compreensão crítica dos marcadores sociais de desigualdade, especialmente o racismo, é perpetuar práticas excludentes, reproduzindo um cuidado clínico que silencia, invisibiliza e violenta as pessoas negras.
Diante disso, a SBMFC, enquanto entidade nacional comprometida com um SUS antirracista, exige:
● Que o curso seja imediatamente revisado, com inclusão transversal e obrigatória da saúde da população negra em sua matriz curricular.
● Que o quesito raça/cor seja incorporado em todos os materiais didáticos, incluindo os guias de apresentação de casos clínicos.
● Que tutores, docentes e gestores do curso recebam formação obrigatória em racismo institucional e saúde da população negra.
Não há cuidado integral sem o enfrentamento do racismo. Não deve haver formação de médicos de família e comunidade sem compromisso com a vida das pessoas negras. Queremos um SUS que não naturalize a morte de pessoas negras. Queremos um ensino que reconheça, enfrente e repare as desigualdades raciais.
Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade (SBMFC)
Referências
¹ Brasil. Ministério da Saúde. Portaria Nº 992, de 13 de maio de 2009. Política Nacional de Saúde Integral da População Negra. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 2009. Seção 1, p. 33. Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2009/prt0992_13_05_2009.html#:~ :text=Considerando%20o%20Decreto%20n%C2%B0,216%20da%20Constitui%C3%A7 %C3%A3o%2C%20no%20art.
² Brasil. Ministério da Saúde. Portaria Nº 344, de 1º de fevereiro de 2017. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 2017. Seção 1, p. 55. Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2017/prt0344_01_02_2017.html
³Geider, H.J. Racial and Ethnic Disparates in Diagnosis and Treatment: a Review of The Evidence and a Consideration of Causes. Institute of Medicine (US) Committee on Understanding and Eliminating Racial and Ethnic Disparities in Health Care; Smedley BD, Stith AY, Nelson AR, editors. Unequal Treatment: Confronting Racial and Ethnic Disparities in Health Care. Washington (DC): National Academies Press (US); 2003. Disponível em: https://www.ncbi.nlm.nih.gov/books/NBK220337/
⁴ Centers for Disease Control and Prevention. Cancer and African American People [Internet]. Atlanta: Centers for Disease Control and Prevention; 2025 [citado em 2025 jul 5]. Disponível em: https://www.cdc.gov/cancer/health-equity/african-american.html
⁵ Ellenbogen MI, Weygandt PL, Newman-Toker DE, Anderson A, Rim N, Brotman DJ. Race and Ethnicity and Diagnostic Testing for Common Conditions in the Acute Care Setting. JAMA Netw Open. 2024;7(8):e2430306. Disponível em: https://doi.org/10.1001/jamanetworkopen.2024.30306
⁶ Harris, S., Narayanan, NS e Tranel, D. A raça negra versus branca afeta a avaliação da doença de Parkinson pelos profissionais? npj Parkinsons Dis. 9 , 106. 2023. Disponível em: https://doi.org/10.1038/s41531-023-00549-2
⁷ Schwartz RC, Blankenship DM. Racial disparities in psychotic disorder diagnosis: A review of empirical literature. World J Psychiatry. 2014 Dec 22;4(4):133-40. doi: 10.5498/wjp.v4.i4.133. PMID: 25540728; PMCID: PMC4274585.
⁸ Shalaby, N., Sengupta, S. & Williams, JB Análise em larga escala revela disparidades raciais na prevalência de TDAH e transtornos de conduta. Sci Rep 14 , 25123 (2024). Disponível em: https://doi.org/10.1038/s41598-024-75954-5