Artigo: Prevenção quaternária e bioética em tempos de COVID-19

6 de maio de 2020

* Rodrigo Lima, médico de família e comunidade, diretor de Exercício Profissional da Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade e mestre em Saúde da Família pela Fiocruz Brasília.

A ocorrência de uma pandemia como a COVID-19 exige ações não apenas de profissionais da saúde, mas do poder público. Enquanto medidas individuais como higiene das mãos e uso de máscaras podem diminuir o risco individual, a proteção da população em sua totalidade exige ações amplas, que acabam por impactar na vida de todas as pessoas, estejam elas mais ou menos expostas ao adoecimento em nível individual.

Medidas populacionais não são direcionadas para cenários individuais; em vez disso, utilizam dados que nos mostram como a doença atua na população em geral, para tentar impactar nos indicadores populacionais. Por sua imprecisão em termos individuais, estas medidas podem até atingir suas metas em termos populacionais mas necessariamente estarão equivocadas em relação a alguns indivíduos, tanto por falta como por excesso: pessoas com menor risco de adoecimento poderão ser expostas a medidas exageradas, e pessoas com maior risco podem ser de alguma maneira negligenciadas. São os efeitos adversos de medidas que se pautam por médias, medianas, aproximações estatísticas. Aconteceram ao longo da história da humanidade, e acontecerão durante a pandemia pela COVID-19.

Pelo risco deste tipo de erro ser permanente em alguns indivíduos, estas medidas deverão ser analisadas continuamente à luz dos nossos princípios e valores mais fundamentais. Disciplinas como a ética devem nortear nossas ações no momento em que os dados mais precisos não são conhecidos. São estes valores que garantirão o funcionamento da nossa sociedade frente a uma ameaça tão ameaçadora quanto desconhecida.

A prevenção quaternária (P4) é definida como o conjunto de ações realizadas para identificar pessoas em risco de excesso de intervenções médicas, proteger estas pessoas das intervenções em excesso e sugerir intervenções que sejam eticamente aceitáveis. A chave da discussão proposta pela P4 reside na ética: ao propor “intervenções eticamente aceitáveis”, o conceito assume a premissa de que as intervenções excessivas não cumprem com os preceitos éticos que devem ser seguidos pela medicina, sendo portanto antiéticas.

A humanidade corre atrás de algumas respostas neste momento: Há tratamento disponível para a COVID-19? Conseguiremos desenvolver uma vacina que evite a doença? As medidas de restrição social são efetivas para diminuir a velocidade de espalhamento do novo coronavírus? Enquanto estas respostas não são descobertas, proponho resgatar os princípios da bioética, que pode ser compreendida como o estudo dos problemas e implicações morais relacionados às intervenções em seres humanos, o que inclui a realização de pesquisas e a prática médica.

A bioética tem quatro princípios: i) Beneficência, que consiste na garantia de que a intervenção fará bem para as pessoas; ii) Não-maleficência, ou seja, a busca por infligir o menor dano possível a partir da intervenção; iii) Autonomia, para garantir que cada pessoa tenha direito de escolher, de maneira esclarecida, sobre as intervenções que serão realizadas em seu corpo; e iv) Justiça, garantindo que as medidas cheguem a todas as pessoas sem discriminação, e ao mesmo tempo priorizando as que mais se beneficiarão destas intervenções. Feito este resgate, como andam as questões relacionadas à COVID-19 em nossa sociedade do ponto de vista bioético?

As ações de prevenção da doença, enquanto não surge uma vacina segura e efetiva, têm consistido na recomendação de higienização das mãos, no uso de máscaras e no distanciamento social. Há pouca controvérsia em relação aos cuidados necessários com a higiene das mãos, e o uso de máscaras, a despeito da pouca evidência científica sobre a sua efetividade parece ter rapidamente se tornado um hábito para muita gente, embora o uso incorreto (especialmente pela manipulação da máscara sem higienização das mãos) possa trazer até mais malefícios que benefícios. O distanciamento social pode estar sendo efetivo no sentido de dobrar a curva da incidência de novos casos, mas tem produzido uma nova crise econômica que não foge à regra das anteriores: atinge principalmente os segmentos mais vulneráveis da população. Como os governos têm enfrentado o desafio da não-maleficência desta intervenção? As filas (quase sempre sem o distanciamento adequado) para recebimento do auxílio emergencial proposto e aprovado pelo Congresso Nacional nos sugerem que ainda precisamos avançar bastante no assunto. A pandemia testa as sociedades, como sugere editorial da revista Lancet Public Health (2), e há dúvidas sobre a nossa aprovação neste teste.

Sobre o tratamento, já testemunhamos várias propostas de soluções: cloroquina/hidroxicloroquina, ivermectina, remdesivir. A Organização Mundial de Saúde informa que não existem medicamentos que tenham demonstrado poder prevenir ou curar a doença (3). Se os efeitos benéficos ainda não foram suficientemente demonstrados, temos algo sobre os malefícios? A revista The BMJ afirma em editorial (4) que a utilização da cloroquina/hidroxicloroquina traz a possibilidade da ocorrência de efeitos adversos como alterações na pele, arritmias cardíacas (especialmente quando utilizada com conjunto com azitromicina, associação presente em quase todos os protocolos que adotaram o medicamento contra a COVID-19), e até hepatite fulminante.

Sabemos ainda que a dose excessiva é perigosa e difícil de tratar. Estudos com ivermectina e remdesivir ainda não atingiram a confiabilidade necessária para assegurar benefícios, embora sejam drogas relativamente seguras quando utilizadas em outros contextos. Assim, parece que ainda não temos respostas efetivas em relação à beneficência, e em algumas situações a potencial maleficência está bem demonstrada. Resgatando o princípio da autonomia, será que as pessoas que optam por utilizar estes medicamentos estão suficientemente esclarecidas sobre os efeitos benéficos e maléficos ao ponto de tomar uma decisão bem fundamentada? E por fim, se a opção for de utilizar o medicamento, existem políticas públicas que garantam o acesso prioritário para as pessoas que precisariam mais dele, garantindo o princípio da justiça?

Parece claro que muitas das intervenções propostas contra a COVID-19 não atendem os princípios bioéticos, mas ainda assim têm sido defendidas por muitos profissionais de saúde? Estes profissionais não conhecem esses princípios? Ou apenas colocam a bioética em segundo plano, muitas vezes priorizando crenças pessoais ou mesmo questões políticas? O flagrante desrespeito a elementos fundamentais da prática médica por parte de muitos profissionais deve nos servir de alerta para os caminhos que estão sendo tomados pela medicina, que pode estar descumprindo um de seus princípios mais conhecidos: “primum non nocere”, ou “primeiro não fazer mal”.

Referências: 

1 – Piccinelli F, Hirsch C Are the lockdowns working? Politico Magazine, April 20, 2020 https://www.politico.eu/article/coronavirus-europe-lockdown-effectiveness-graphics/ (Acesso em 05/maio/2020).

2 – Editorial. COVID-19 puts societies to the test. The Lancet Public Health. Volume 5, Issue 5, E235, May 01, 2020 https://doi.org/10.1016/S2468-2667(20)30097-9.

3 –  World Health Organization. Q&A on coronaviruses (COVID-19) https://www.who.int/news-room/q-a-detail/q-a-coronaviruses (acesso em 05/maio/2020).

4 – Editorial. Chloroquine and hydroxychloroquine in covid-19. BMJ 2020; 369. April 08, 2020. https://doi.org/10.1136/bmj.m1432.