Confira a entrevista da diretora do DAB, Claunara Schilling

16 de dezembro de 2009

Gaúcha de Santa Maria, interior do Rio Grande do Sul, Claunara Schilling Mendonça escolheu cedo a especialização em Medicina Geral Comunitária no Grupo Hospitalar Conceição. Lá, deu os primeiros passos para atuar no Programa Saúde da Família (PSF) que mais tarde a levaria à diretoria do Departamento de Atenção Básica (DAB), do Ministério da Saúde.

Desde 2002 no Ministério, Claunara já atuou como assessora técnica do Departamento de Regulação e apoiou as Secretarias Estaduais e Municipais nas políticas da Secretaria de Atenção à Saúde. Dona de opiniões firmes sobre o cenário ideal para o bom funcionamento do PSF no Brasil, ela discute os principais desafios a serem superados na APS brasileira.

“No Brasil, a atenção primária faz a diferença sim, onde o Programa Saúde da Família está implantado cumprindo seus princípios, a população fica satisfeita e o resultado de sua saúde é melhor. Mas a classe média, formadora de opinião, tem pouco acesso à atuação de serviços de atenção primária e da Saúde da Família. Isso dificulta a expansão nacional do programa.” Confira a entrevista, a seguir.

SBMFC Informa – A sustentabilidade do PSF tem uma base sólida na Medicina de Família e Comunidade?

Claunara Schiling de Mendonça – O PSF é uma experiência consolidada no país, uma Política de Estado, mas ainda é muito pequena a participação dos médicos de família e comunidade no Saúde da Família (6% das equipes). Sem dúvida, os países que reorientaram seus sistemas de saúde a partir da APS, modificaram o ensino médico, principalmente as residências médicas. No caso brasileiro, mesmo que se aumente o número de vagas nessa especialização, ela ainda não é reconhecida como um espaço de satisfação e realização do profissional médico. Por isso, as vagas não são ocupadas. Em parte, isso pode dever-se às más condições para o trabalho – infra-estrutura, garantia dos insumos para exercer a integralidade do cuidado, número adequado de população sob sua responsabilidade, problemas apontados pelos profissionais nas equipes. Mas, principalmente, pela falta de exemplos durante seu processo formativo.

Não temos dúvidas de que a residência em MFC é "padrão-ouro" para a Saúde da Família, mas até a sociedade brasileira compreender que é bom para sua saúde ter uma equipe atenta, em longo prazo, haverá o enorme desafio de realizar uma especialização em serviço e consequente certificação dos médicos, vinculados a uma educação permanente devido à enorme exigência desse campo de atuação.

SBMFC Informa – Ainda há dificuldade na implantação do projeto em território nacional? O que fazer para resolver o problema?

Claunara – Ao mesmo tempo em que temos regiões cuja implantação é o desafio, como nas metropolitanas e na Amazônia Legal, em outros estados a grande problemática é a qualificação, pois a cobertura já é próxima de 100%. Ampliamos o acesso às consultas médicas em todas as faixas etárias da população e também sua chance de receber ações preventivas que promovam sua saúde.

No entanto, o maior desafio de todos continua sendo, nas equipes implantadas, a garantia do cumprimento dos atributos em prol do acesso e a integralidade do cuidado. Para isso, o financiamento deve ser adequado, a gestão dos municípios deve estar centrada na atenção primária, os gerentes das unidades devem ter condições de planejar, regular e avaliar o trabalho desenvolvido com foco nas pessoas e os profissionais envolvidos devem saber o que é esperado deles, de preferência, com valorização conforme alcance de melhores resultados para a população atendida.

SBMFC Informa – Em artigo publicado pelo jornal Folha de S. Paulo, em novembro de 2008, o deputado federal José Aristodemo Pinotti (DEM-SP) criticou o PSF considerando o sistema “obsoleto” e afirmando ser suficiente a atuação dos agentes comunitários de saúde em detrimento dos médicos de família e comunidade. Como avalia essa questão

Claunara – Nenhuma experiência de atenção primária pode acontecer sem o vínculo a um médico de família. Os agentes comunitários são uma característica singular do modelo brasileiro e ajudam a cumprir outro importante desafio da APS/Saúde da Família: a abordagem comunitária e a competência cultural, ou seja, a capacidade de entender melhor os pacientes e suas famílias, "traduzindo" melhor suas necessidades ao restante da equipe. Contudo, nenhum modelo de APS prescinde do trabalho médico. A ousadia do modelo brasileiro, ao trabalhar com território e população definidos, pode, eventualmente, sobrepor determinadas ações entre os trabalhadores de uma mesma equipe. Esse é um dos desafios a serem superados no processo de trabalho em APS/SF.
Agora, dizer que o trabalho dos agentes comunitários é suficiente é um reducionismo incompatível com o sistema universal de saúde, de qualidade, capaz de ofertar o necessário a toda população brasileira, tendo como porta de entrada as equipes de Saúde da Família.

SBMFC Informa – O termo “Médico de cabeceira” sugere uma especialidade antiquada. A tecnologia, hoje, está presente nas equipes do PSF?

Claunara – Essa questão do nome que se dá ao especialista de atenção primária e à própria atenção primária em saúde, que no Brasil foi traduzida como atenção básica, não deve confundir sua finalidade. Médico de cabeceira é como são chamados na Espanha, assim como na Inglaterra são os GP – generalistas, ou em Portugal são médicos de clínica geral. O que temos em comum é sermos o ponto da rede de atenção à saúde com baixa densidade em tecnologia "dura" (equipamentos etc) e altíssima complexidade em tecnologias "leves", que dependem da relação entre as pessoas.
Uma das mais importantes tecnologias na medicina de família e comunidade é saber ouvir o paciente. A ação de proteger os pacientes de condutas invasivas, prevenindo intervenções desnecessárias é também um papel importante da APS. Nela lidamos com muitas incertezas e temos o compromisso de propor as intervenções eticamente aceitáveis, junto aos nossos pacientes. As tecnologias do conhecimento para a melhor tomada de decisão pelos médicos da APS são o que há de mais inovador para o trabalho médico em APS. Se pudermos escolher em quais tecnologias deveríamos mais investir no trabalho médico em APS seriam as que ajudem no manejo mais adequado dos pacientes – cada vez mais velhos, com doenças crônicas, co-morbidades e incapacidades e a comunicação. A confiança, por parte dos pacientes, no trabalho do médico é um fator indispensável para melhorar ou manter seu estado de saúde.