Entrevista – Felipe Proenço

3 de setembro de 2013

Leia na íntegra a entrevista exclusiva que o diretor de Programas da Secretaria de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde (SGTES), Felipe Proenço, concedeu ao Jornal Saúde da Família – publicação oficial da Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade (SBMFC) – sobre o Programa Mais Médicos.

 

 SBMFC – Afinal, faltam médicos no Brasil ou apenas no sistema público?

Felipe Proenço – Não temos dúvida nenhuma de que faltam médicos no Brasil. Comparado a países vizinhos e países com sistemas universais de saúde, enquanto o Brasil tem 1,8 médico por mil habitantes, no Reino Unido são 2,7, na Espanha, 3,9 e em Portugal, 4, por exemplo. Então sabemos  que há um número insuficiente de médicos no País, tanto do ponto de vista de comparação internacional quanto do fato de o número de postos de  emprego ser muito superior ao de profissionais egressos de cursos de medicina – só nos últimos anos foram criados 93 mil postos de primeiro  emprego a mais do que médicos recém-formados. Quando olhamos a situação do mercado de trabalho médico, onde esse profissional está em uma  posição de pleno emprego, variações de pesquisas demonstram que o número de desocupados entre os profissionais médicos é de 0,4%. Logo, não  temos dúvidas de que faltam médicos, e esse número fica mais claro em virtude da expansão dos serviços públicos de saúde, da Estratégia Saúde da  Família (ESF), de leitos hospitalares e de equipamentos ambulatoriais. É uma falta sentida em todos os serviços, uma prerrogativa específica do  sistema público de saúde.

 

SBMFC – Incentivar a vinda de médicos estrangeiros sem a revalidação auxilia na resolução do problema? Quais seriam os riscos e potencialidades dessa iniciativa?

Felipe Proenço – Estamos nos espelhando em experiências internacionais de países que fizeram o processo de atração de médicos estrangeiros e que condicionaram a não ter o exercício pleno da medicina à atuação em determinadas localidades. Então, quando vemos a experiência da Austrália e do Canadá, onde os médicos atuam nas regiões de maior carência por um período determinado e com um registro provisório que garante a inserção dele só naquela determinada localidade, entendemos que a vinda de médicos estrangeiros auxilia sim na resolução do problema a curto prazo, junto com as outras medidas que o Ministério da Saúde e o Ministério da Educação têm criado de ampliação de cursos de graduação e  vagas de residência médica. A curto prazo, não temos dúvida de que é uma ação necessária e que resolve esse problema de milhões de brasileiros que estão sem acesso ao médico no sistema de saúde. Além disso, entendemos ser fundamental que as equipes de saúde da família sejam constituídas por médicos, e nós temos direcionado o Programa Mais Médicos para a atenção básica nesse momento.

 

SBMFC – Você é contra ou a favor da regulação do número de especialistas médicos pelo Governo? E como avalia a proposta de 40% de vagas de residência para Medicina de Família e Comunidade (MFC)?

Felipe Proenço – Entendemos que o Estado deve ter um papel na definição de quantos e quais especialistas serão necessários. Portanto, do ponto de vista constitucional, é prerrogativa do SUS, quando se fala da ordenação na formação de recursos humanos, que o Estado tenha esse papel. Historicamente, isso é raro no Brasil, até pela dificuldade que temos em parametrizar a necessidade de especialistas para o País. Então, ainda temos formas de titulação, cujos bancos de dados não são acessíveis publicamente, como é o caso dos titulados pela Associação Médica Brasileira (AMB), que começaram a participar de um grupo de trabalho conosco para formar um cadastro nacional de especialistas, mas que nunca trouxe os dados da entidade com relação à quantidade de médicos especialistas formados. Do ponto de vista do papel da residência médica regulando o mercado de trabalho, não temos dúvida do papel que ela pode ter nesse sentido, de que efetivamente 40% das vagas de residência tenham sempre a MFC. Temos nos espelhado nos mesmos países que vimos utilizando para olhar o quantitativo de médicos e as experiências de atração de médicos estrangeiros. São países que efetivamente direcionaram para a maior formação de especialistas na área de MFC, então concordamos com essa proposta.

 

SBMFC – O Governo estuda a proposta de o primeiro ano para todas as residências ser em emergência e atenção primária à saúde. Qual  sua opinião sobre essa iniciativa?

Felipe Proenço – Toda medida que aumentar o tempo de formação na atenção básica na graduação em medicina é bem-vinda, e é importante que tenhamos a formação conforme está descrito nas Diretrizes Curriculares, sobre uma formação generalista, de um profissional mais crítico e reflexivo. As iniciativas tomadas dentro desse ponto de vista nos últimos 12 anos demonstram a necessidade de outras ações que garantam uma formação na atenção básica, então temos que ter a garantia de que o profissional após esses seis primeiros anos também possa estar diretamente vinculado à atenção básica, sendo supervisionado e preceptorado por um especialista na área – daí a importância da preceptoria em MFC. Com certeza, haverá uma repercussão tanto nos seis anos iniciais de formação quanto na atividade profissional futura do médico. Então entendemos que esse período após os seis anos, em que o médico esteja inserido na atenção básica, preceptorado mas ao mesmo tempo com autonomia para transcrição, é um período fundamental para sua formação, e acho que contribuirá de maneira muito importante para a atenção básica.

 

SBMFC – Quem supervisionaria esses estágios de atenção primária e urgência para o primeiro ano de residência? Há preceptores suficientes nessas especialidades qualificados no Brasil? Como enfrentar esse desafio?

Felipe Proenço – Foi feita uma proposta pela Comissão de Especialistas, e com aval da Associação Brasileira de Educação Médica (ABEM), que ainda não foi detalhada. O passo seguinte ao que temos feito por meio do Pró-Residência, que oferta 30% de vagas para a residência de MFC das nossas bolsas, é entender que já que a meta é universalizar a residência até 2017, que nesse prazo, junto com as ofertas que já fazemos de residência, tenhamos uma ampliação importante de preceptores na área de MFC, inclusive ofertando processos de especialização que já tenhamos discutido com a SBMFC. Entendemos que haveria preceptores suficientes, assim como avaliamos a capacidade dos serviços para poder ter esse número de vagas de residência. Inclusive contamos com a SBMFC para chegar a esse parecer final, de que há suficientes preceptores qualificados.

 

SBMFC – Em sua opinião, qual o papel da medicina de família e comunidade nas atuais propostas de interiorização e qualificação do trabalho médico?

Felipe Proenço – Já contamos com vários médicos de família e comunidade como supervisores do Programa de Valorização do Profissional da Atenção Básica (Provab), por exemplo. Temos a experiência do Grupo de Trabalho de Medicina Rural da SBMFC, que vem participando das discussões que temos realizado aqui no Ministério da Saúde. O ministro Alexandre Padilha recebeu a entidade recentemente e já estamos marcando uma nova agenda com a Sociedade. Acho que o GT da SBMFC pode ajudar a pensar nesse modelo de preceptoria. Inclusive, no Congresso de Belém fizemos um convite ao GT de Medicina Rural da SBMFC para nos ajudar a pensar nesses novos cursos de graduação de medicina que estão sendo abertos pelo MEC e como reforçar a formação na área de medicina rural. São agendas que ainda estão sendo viabilizadas, mas sabemos da importância do papel do médico de família e comunidade no processo.

 

SBMFC – Atualmente a residência é uma das formas de se tornar especialista, pois o médico pode também prestar a prova de título da especialidade. O interesse de mercado faz com que, por exemplo, mais pessoas queiram fazer dermatologia, enquanto há poucos médicos especialistas em medicina de família e comunidade, independente do número de vagas de residência existentes e da necessidade social. Qual sua opinião sobre a situação?

Felipe Proenço – A residência tem que fazer uma regulação de ingressos no mercado de trabalho. O fato de a gente estar conseguindo fazer a expansão de serviços públicos nessa área ajuda a direcionar. A partir do momento em que conseguirmos parametrizar qual é a necessidade desses especialistas, e o que temos utilizado ultimamente para parametrizar – são estimativas baseadas nos modelos de atenção de outros países -, conseguiremos expandir a formação em MFC e avaliar se realmente há necessidade dessa quantidade de formação de especialistas nas outras áreas.

O que determina a maior procura por essas especialidades não é só a questão do mercado de trabalho, é a própria formação que ainda continua muito dentro do hospital e direcionada para determinadas especialidades.

 

SBMFC – Estudos internacionais mostram que a residência é um dos fatores de fixação dos médicos na região. O Pró-Residência, programa do Governo, visa à ampliação de Programas de Residência em Especialidades Estratégicas do SUS desde 2009, em regiões com carência desses profissionais. Entretanto, apesar da ampliação de bolsas nos últimos anos, o programa tem enormes desafios para criação de programas nas regiões norte, nordeste e centro-oeste. Duas das principais dificuldades são a falta de recursos para incentivo aos preceptores e a falta de profissionais com o título da especialidade nessas regiões. Qual sua proposta para enfrentar esse problema da desigualdade regional na concentração de médicos especialistas e de programas de residência nas regiões sul e sudeste?

Felipe Proenço – Só com a proposta anunciada de expansão de mais 11.500 vagas de graduação e mais 12 mil de residência, a ideia é que pelo menos 67 novas cidades no País possam contar com essas ofertas de graduação e residência. Sabendo que o médico que faz graduação e residência na mesma localidade tem 86% de chances de permanecer na mesma região onde desenvolveu essas etapas da formação, entendemos que a ampliação da graduação e da residência dará conta de ajudar na fixação dos médicos nessas localidades mais remotas e reduzir as desigualdades regionais. Até porque, se olharmos a expansão que o MEC fez recentemente, vemos que resultados já estão sendo obtidos no sentido de, proporcionalmente, aumentar bastante a formação no norte, centro-oeste e, um pouco menos, no nordeste do País. Portanto, entendemos que esse programa vai responder a essa situação também.

 

SBMFC – A carreira de Estado proposta pelas entidades médicas é viável? Quais seriam os entraves e qual sua opinião a respeito?

Felipe Proenço – Tanto consideramos viável como temos apoiado carreiras desenvolvidas por estados que se inscreveram na Portaria lançada pela SGTES no final do ano passado. Porém, achamos fundamentais alguns pontos para essa carreira- o primeiro é que ela não pode desconsiderar todo o acúmulo e toda a construção do SUS, que é trabalhado do ponto de vista interfederativo, em formato tripartite. As propostas de carreira que temos apoiado são desenvolvidas de forma consorciada entre municípios, para que não aconteça disputa entre cidades vizinhas por um profissional médico. Portanto, devem ser realizadas de forma consorciada entre os municípios, que tenham um papel no planejamento e financiamento do Estado, e que o Ministério da Saúde, como já vem fazendo, também ajude no financiamento dessas carreiras. Além disso, nós defendemos uma carreira em que o médico tenha dedicação exclusiva ao SUS. O médico não poderá atuar na carreira de Estado e em um consultório, ou ser cooperativado ao mesmo tempo.

 

SBMFC – Em sua opinião, qual deveria ser o salário base para um médico 40h no SUS? E 20h?

Felipe Proenço – O que estamos praticando já está acima da média salarial dos médicos da Estratégia Saúde da Família (ESF), que de acordo com dados da Relação Anual de Informações Sociais (RAIS), fica em torno de R$ 7.500, sendo que o salário dos médicos, entre as carreiras universitárias, foi o que mais aumentou nos últimos anos. Vínhamos praticando no Provab, o valor de R$ 8 mil e, com o Mais Médicos, o valor irá para R$ 10 mil. Então, entendemos que é uma resposta acima da média salarial do que o médico está recebendo na (ESF) e que é um valor bastante atrativo para os médicos atuarem na atenção básica, nas regiões de maior necessidade do País.

 

SBMFC – Você considera o pagamento diferenciado segundo a formação e a remuneração por desempenho, dentro de um vínculo de contrato estável para profissional, uma proposta viável para a valorização e qualificação do profissional no sistema público?

Felipe Proenço – É o que temos apoiado nas carreiras que aprovamos, por meio da Portaria e, se possível, que inclusive a residência de medicina de família e comunidade seja um ingresso de carreira de quem quer atuar na atenção básica e, que do mesmo modo, a residência seja valorizada para isso. Assim como a formação de pós-graduação stricto sensu também seja valorizada na área, entendemos que é importante e viável.

 

SBMFC – Você gostaria de acrescentar algum comentário?

Felipe Proenço – Estamos com uma agenda de diálogo aberta e contamos com as contribuições e com a participação da SBMFC e dos médicos de família e comunidade no programa, seja por meio do provimento das regiões de maior necessidade, como supervisores ou tutores. Todas as contribuições são bem-vindas para aperfeiçoarmos este que é um tema que por muito tempo não foi discutido ou colocado na centralidade da agenda dos debates do SUS. O fato de colocarmos esse programa, a gestão do trabalho de educação em saúde e a formação médica na centralidade da pauta, inclusive da presidência da República, é uma janela de oportunidades, até mesmo para a MFC discutir seu papel na formação médica e de especialistas para o País. Não temos dúvidas de que o que já se acumulou de debates da especialidade vai contribuir tanto para desenvolvermos as ações já propostas quanto para aperfeiçoar o programa.