Lesbofobia

27 de novembro de 2020

Texto número 4 da série sobre 16 dias de ativismo contra a violência relacionada ao gênero, organizada pelo Grupo de Trabalho Mulheres na MFC, com apoio de outros GTs. 

A sexualidade é um dispositivo importante de controle social tal como afirma Michel Foucault1 e, para mulheres, atua como importante mecanismo de subordinação2. A sexualidade feminina é socialmente moldada para se encaixar aos interesses de um sistema patriarcal e capitalistas que se pauta na família nuclear heterossexual monogâmica como base organizacional da sociedade3. Tal sistema produz e alimenta o discurso da cisheteronormatividade como forma de controle e opressão4

Ser lésbica implica estar submetida a duas matrizes de opressão social: ser mulher e lidar com o sexismo vigente em uma sociedade que não a respeita como sujeito de direitos; e não corresponder ao roteiro sexual estabelecido como norma: a hetossexualidade compulsória. Lésbicas e outras mulheres que se relacionam com mulheres têm sua subjetividade e sociabilidade atravessadas pelo estresse de minorias sexuais e de gênero, imposto à população que não se adapta a cisheteronormatividade5. Tal estresse é composto por quatro elementos, segundo Meyer (2003): a lgbtfobia internalizada, o estigma social, o contínuo medo de rejeição e o dilema contínuo entre revelar ou não a identidade sexual e de gênero. Enquanto mulheres em uma sociedade patriarcal, lésbicas têm a sexualidade duplamente negada por uma sociedade que é incapaz de reconhecer direitos sexuais e reprodutivos de mulheres e pelo desacordo com a heteronorma que sustenta a divisão sexual do trabalho e, portanto o sistema capitalista de subordinação6,7

A homossexualidade feminina é ativamente silenciada em todos os espaços7, sofrendo inclusive margnalização dentro do moviento feminista8,9, e do próprio movimento LGBT9, que tem a ordem da sigla alterada especificamente com o intuito de chamar atenção para a invisibilidade da narrativa e da agenda de lésbicas. Para visibilizar as especificidades de violências relacionadas com a homossexualidade feminina, criou-se o termo LESBOFOBIA e, em 2018, os grupos Núcleo de Inclusão social (NIS) e Nós: dissidências feministas lançaram o Dossiê sobre Lesbocídio no Brasil, com dados de mortes por lesbofobia no país entre os anos de 2014 e 2017.10 

As lesbofobias envolvem situações de violência intra familiar, tanto a partir da família de origem com responsáveis que não acolhem a identidade sexual de suas filhas e, por vezes expulsam-as de casa, como também em relações afetivo/romântico/sexuais, que podem configurar-se como abusivas11. Há um mito de que relações homossexuais não são abusivas à medida que envolvem duas pessoas do mesmo gênero. Tal mito contribui para que mulheres lésbicas vítimas de violência doméstica permaneçam silenciadas. A fragilidade da rede de apoio, em decorrência do estigma social e preconceito, tornam mulheres lésbicas mais vulnerabilizadas em relacionamentos não horizontais. Para acolher mulheres nessa situação é preciso considerar o contexto e as possibilidades de agenciamento desta mulher e do casal. 

Uma das formas mais agressivas de lesbofobia consiste no estupro corretivo, prática por meio da qual mulheres lésbicas são forçadas a ter relaçõessexuais com penetração anal como estratégia para torna-las heterossexuais. Além de uma violência sexual, o estupro corretivo infere a negação da lesbianidade como possibilidade de ser no mundo, associando- a ao estigma de algo patologico que pode ser curado12.

A lesbofobia ocorre em decorrência da cisheteronormatividade presente nas instituições sociais como a escola, o mercado de trabalho e a saúde. No âmbito da saúde, a lesbofobia se apresenta por via da reprodução da cisheteronorma, que impede profissionais de saúde de perguntar sobre a sexualidade das mulheres, pelo não reconhecimento das relações sexuais entre lésbicas como tal e portanto com falta de informações qualificadas sobre sexo mais seguro, métodosde barreira eficazes e possibilidade de transmissão de ist’s e pela não oferta de programa de rastreamento de câncer de colo uterino e de mama7,13,14. O direito ao planejamento reprodutivo de casais de lésbicas também é um tema negligenciado por profissionais de saúde. É importante ressaltar ainda que, entre casais de mulheres cis e trans que não realizaram cirurgia de afirmação de genero e utilizam o pênis para relações sexuais, a discussão de planejamento reprodutivo é importante para avaliar conjuntamente a necessidade ou não de prescrição de contraceptivos.

As relações sociais de lésbicas brasileiras não são atravessadas exclusivamente pelas matrizes de opressão de gênero e sexualidade. Classe, raça e identidade de gênero são formas de opressão que vão interagir e atuar diretamente no processo de saúde e adoecimento e, portanto, precisam ser percebidas e acolhidas, com vistas a um cuidado integral com equidade9,15

Por Rita Helena Borret e Renata Carneiro Vieira

 

Referências

  1. FOUCAULT, M. História da sexualidade: a vontade de saber. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1988
  2. LUGONES, M. Colonialidad y género. Tabula Rasa, Bogotá, n. 9, jul.-dic. 2008. Doi: 10.25058/20112742.340.
  3. RICH, Adrienne. Heterossexualidade compulsória e existência lésbica. Bagoas, v. 4, n. 5, p. 17-44, 2010.
  4. BUTLER, Judith. Problemas de gênero. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.
  5. MEYER IH. Prejudice, social stress, and mental health in lesbian, gay, and bisexual populations: conceptual issues and research evidence. Psychological bulletin. 2003 Sep;129(5):674.
  6. CURIEL, Ochy. La nación heterosexual: análisis del discurso jurídico y el régimen heterosexual desde la antropología de la dominación. Bogotá: Edición Brecha Lésbica y En La Frontera, 2013.
  7. FACCHINI R, Barbosa RM.  Dossiê: Saúde das Mulheres Lésbicas promoção da equidade e da integralidade. Rede Feminista de Saúde. Belo Horizonte, 2006.
  8. WITTING, Monique (1978) “La mente hetero”, discurso pronunciado en el Congreso Internacional sobre lenguaje moderno. Traducido por primera vez en español por lejandra Sardá en: www.lesbianasalavista.com.ar/lamentehetero.html
  9. ALMEIDA, G.; Heilborn, M. L. Não somos mulheres gays: identidade lésbica na visão de ativistas brasileiras. Revista Gênero, vol.9, nº1, Niterói, UFF, 2o sem. 2008, pp.225-249.
  10. PERES MCC. Dossiê sobre lesbocídio no Brasil : de 2014 até 2017 / Milena Cristina Carneiro Peres, Suane Felippe Soares, Maria Clara Dias. – Rio de Janeiro: Livros Ilimitados, 2018.
  11. MOLEIRO, C. Pinto, N. Oliveira, JM e Santos, MH. Violência doméstica: boas práticas no apoio a vítimas LGBT: guia de boas práticas para profissionais de estruturas de apoio a vítimas. Comissão Para A Cidadania e a Igualdade De Género, Divisão de Documentação e Informação. Lisboa, 2016. 
  12. SANTOS, TN et al. Percepções de lésbicas e não-lésbicas sobre a possibilidade de aplicação da Lei Maria da Penha em casos de lesbofobia intrafamiliar e doméstica. Revista Bagoas – Estudos gays: gêneros e sexualidades, v.5, n. 11 | 2014 | p. 101-119 
  13. RUFINO AC, Madeiro A, Trinidad AS, Rodrigues Dos Santos R, Freitas. Disclosure of Sexual Orientation Among Women Who Have Sex With Women During Gynecological Care: A Qualitative Study In Brazil. J Sex Med 2018;15:966-973.
  14. DE ARAUJO, Luciane Marques et al. O cuidado às mulheres lésbicas no campo da saúde sexual e reprodutiva [The care to lesbian women in the field of sexual and reproductive health] [El cuidado de las mujeres lesbianas en el campo de la salud sexual y reproductiva]. Revista Enfermagem UERJ, [S.l.], v. 27, p. e34262, maio 2019. ISSN 0104-3552.
  15. LIMA, Fátima. Corpos e processos de subjetivação em mulheres negras e lésbicas. Cadernos de Gênero e Diversidade, v. 4, n. 2, abr./jun. 2018.