Os desafios do planeta

25 de janeiro de 2024

Não é mistério algum: as mudanças climáticas, que põem em xeque o equilíbrio da Terra, também são um risco para a saúde humana. Para minuciar o tema, a SBMFC entrevistou Enrique Barros, médico de família e comunidade cujo trabalho, no Brasil e mundo afora, se conecta com a saúde planetária e transcende o modelo tradicional de formação de profissionais do campo da saúde.

Barros, que hoje atua em uma comunidade rural em Santa Maria do Herval, no Rio Grande do Sul, e leciona na Universidade Feevale na área de Atenção Primária à Saúde, recebeu, em 2023, a distinção Fellowship, o maior prêmio da World Organization of Family Doctors (WONCA). A honraria foi um reconhecimento à década que o médico dedicou à consolidação dos conceitos de saúde planetária dentro da entidade.

Ao explorar a complexa teia de fatores que contribuem para a crise climática, Barros oferece uma visão esclarecedora sobre a ascensão dos níveis de gás carbônico na atmosfera, destacando não apenas a origem, mas também os efeitos atrozes dessas emissões no bem-estar das pessoas. O diálogo abrange desde a influência dos combustíveis fósseis até a intrincada relação entre o sistema alimentar, o desmatamento e a criação de gado. Leia a seguir.

 

Muito se fala sobre os gases que poluem a atmosfera terrestre. São eles os responsáveis pelo efeito estufa?

É comum misturar as coisas. Gases de efeito estufa, os GEE, são os causadores do aquecimento global. Dióxido de carbono (CO2) e metano (CH4) são os principais GEE emitidos por atividades humanas. Grosso modo, três quartos do total de GEE são emitidos pela queima de combustíveis fósseis pelo setor de energia e um quarto pelos sistemas alimentares. Grande parte da pegada de carbono do Brasil tem origem no nosso sistema alimentar, que se apoia na pecuária bovina. Os animais ruminantes produzem CH4, GEE que mais retém calor na atmosfera terrestre. Antes da carne de gado chegar à nossa mesa, muito mato – seja na Amazônia, no Cerrado, no Pantanal – é derrubado ou queimado, o que libera CO2. É o que chamamos de criação de gado extensiva. É bom lembrar que as queimadas das florestas também poluem o ar com material particulado que causa doenças pulmonares e cardiovasculares entre outras. Junto com a Fiocruz, a Fundação Oswaldo Cruz, e a UFCSPA, a Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre, a SBMFC publicou, na revista The Lancet, o relatório “Recomendações para Políticas de Saúde no Brasil” ¹, que trata de sistemas alimentares saudáveis e sustentáveis e como maximizar os co-benefícios da ação climática para a saúde.

 

De uns anos para cá, as ondas de calor aumentaram exponencialmente. É possível evitá-las?

Se cresce a emissão de poluentes e cresce o nosso consumo de energia, crescem também as ondas de calor. A solução é acabar com os combustíveis fósseis. Gasolina, diesel, querosene… chega. Precisamos investir em energia solar, por exemplo. Em energia nuclear, embora essa alternativa seja controversa. O problema da energia nuclear é que há geração de lixo radioativo e risco de explosões, como o que ocorreu em 2011 na usina de Fukushima, no Japão. Isso é ruim, é claro, mas é a saída menos prejudicial. Em uma comparação para fins didáticos, a energia nuclear é alguém que toma uma colher de chá de sal por dia, e as mudanças climáticas são alguém que come um churrasco inteiro diariamente. Considerando todo o planeta, bilhões e bilhões de pessoas, os problemas causados pelas usinas nucleares são insignificantes. Devemos ainda diminuir nosso gasto energético e regenerar a Amazônia, as florestas em geral. Elas reduzem o impacto da poluição na atmosfera.

 

Nesse contexto, como a saúde da população tem sido afetada?

O mais adequado é sempre separar os impactos das mudanças climáticas entre diretos e indiretos. O que costumamos enxergar com maior clareza são os diretos: os eventos climáticos extremos. Eventos que, aliás, nem deveriam ser chamados de naturais, uma vez que já são causados pelo ser humano. Feito as próprias ondas de calor, que fazem com que muita gente passe mal e morra. Todos os dias venho atendendo a mais ou menos três pacientes que relatam indisposição, tontura, pressão baixa, varizes estouradas – consequências das altas temperaturas, bem como as doenças transmitidas por mosquitos, que vão piorar, já estão piorando nossa saúde. Mosquitos adoram calor, se reproduzem mais. A propósito, a Superintendência de Atenção Primária do Rio de Janeiro publicou, no dia 15 de dezembro, uma nota técnica que dispõe sobre a atuação das equipes de atenção primária diante das ondas de calor. Esse texto usou como fonte um artigo que publiquei junto com nossa colega Mayara Floss na RBMFC, a Revista Brasileira de Medicina de Família e Comunidade: “Estresse por calor na Atenção Primária à Saúde: uma revisão clínica” ². Além disso, o nível do mar está subindo, temos visto muito mais desabamentos, enchentes, chuvas torrenciais, secas. Logo, falta comida. Já são aproximadamente 30 milhões de pessoas passando fome, não podemos esquecer. Tudo começa a ficar mais caro e a população, em especial a mais pobre, começa a consumir alimentos mais baratos, aqueles ricos em carboidratos e pobres em nutrientes, pães, salgadinhos e outros, porque não consegue bancar salada, feijão. Nessa esteira, não é de se espantar que obesidade, desnutrição e hipertensão sejam condições observadas cada vez mais. É uma junção de epidemias.

 

E os impactos indiretos?

A existência de refugiados ambientais, por exemplo. Fica insuportável viver em determinados lugares. A Síria é um desses casos. A guerra que acontece no país levou um milhão de pessoas a fugirem para a Europa. Com isso, a ultradireita europeia, xenofóbica ao extremo, ascendeu. Lá, a gota d’água para o conflito foi uma seca histórica. Faltou comida, a vida dos agricultores se tornou mais difícil.

 

O que um médico de família e comunidade pode fazer diante da crise?

Na minha casa, instalei placas fotovoltaicas, tento gastar o mínimo de energia e reduzir a produção de lixo. Só minha esposa tem carro, e evito usá-lo; ando a pé e de bicicleta. Tento servir de modelo para meus pacientes e faço ativismo científico. Sinto que médicos querem falar sobre o tema com seus pacientes, mas não sabem como. Por que não dando o exemplo? Também tenho conversado com colegas sobre falar um minuto pelo planeta na consulta.

 

¹ The Lancet. 2023 Lancet Countdown Policy Brief Brazil. Disponível em: https://www.dropbox.com/scl/fi/hd8j68q26zra7bubitz2c/Brazil-Portuguese-Policy-brief-2023.pdf?rlkey=7bm7yccqdnc63i2qzxts8ragc&dl=0

² Floss M, Barros EF. Estresse por calor na Atenção Primária à Saúde: uma revisão clínica. Rev Bras Med Fam Comunidade [Internet]. 14º de fevereiro de 2020 [citado 14º de dezembro de 2023];15(42):1948. Disponível em: https://rbmfc.org.br/rbmfc/article/view/1948