Qualidade da mente

1 de fevereiro de 2024

(Conferência ministrada pela Profª. Iona Heath, em memória do Prof.
Ian McWhinney, Canadá, 2023. Texto publicado originalmente pelo

Canadian Family Physician, Dezembro 2023, 69 (12) 821-826).

Tradução: Rodrigo Lima, MFC, Brasília, DF. Autorizado pela autora.


Ian McWhinney tornou-se uma inspiração para mim em 1989, quando li a recém-publicada segunda edição do seu maravilhoso “
A Textbook of Family Medicine, e me deu o título desta conferência: “A profundidade do conhecimento depende da qualidade da mente, não do conteúdo da informação”.(1)

Ian não apenas escreveu mas também exemplificou isso. Há muita informação em seu livro mas o total é iluminado pela qualidade de sua mente e pelo alcance de seu pensamento.

Em seu livro texto, ele escreveu o seguinte:

“A variabilidade humana é tal que, para uma pessoa gravemente doente, o médico não pode ser uma peça substituível. Se nós insistimos em nos tratar como tal, não devemos nos surpreender se a sociedade nos tratar como operadores em vez de profissionais. Também não devemos nos surpreender se isso nos afetar enquanto pessoas. Nós empobrecemos à medida que nos distanciamos de nossos pacientes. Nossas vidas profissionais serão menos satisfatórias e perderemos muito da profundidade da experiência que a medicina pode nos propiciar.”(1)

Quando eu li esse trecho, tive um choque de reconhecimento. Eu atuava na MFC há 14 anos e já conseguia perceber que aquilo era exatamente o que estava acontecendo ao meu redor, e os 21 anos seguintes de prática me confirmaram a verdade daquela afirmação.

Ian sabia que a habilidade e as conquistas dos MFC se baseiam na relação entre médicos e pacientes, que esses relacionamentos eram preciosos e que qualquer distanciamento poderia ser danoso. E assim tem sido.

Ainda em seu livro, ele escreveu:

“Na MFC nós encontramos com frequência o adoecimento sem um processo patológico perceptível – doença sem enfermidade. A enfermidade e a doença pertencem a dois universos de discurso distintos: um ao mundo da teoria, o outro ao mundo da experiência.” (1)

Para mim, essa frase é absolutamente característica do autor: ele identifica com frequência uma contradição e então partia para explorar a dialética que surgia. Ele sabe que ambas as partes são essenciais, mas nos convida a pensar se o equilíbrio entre elas é adequado, e neste processo há muito o que aprender.

Então aqui quero apontar cinco dessas dialéticas e ver onde isso nos leva, lembrando que o grande físico dinamarquês Niels Bohr teria dito que “nós jamais entenderemos algo até encontrarmos algumas contradições”.(2)

Isso me lembra a escultura “Utopia”, do incrível artista dinamarquês Keld Moseholm, que faleceu em maio deste ano aos 87 anos de idade. Uso a imagem para representar o desafio da medicina e dos cuidados em saúde.

Teoria/prática

Se a escultura representa a medicina, a retrata como algo inflado, com uma perna aparentemente apoiada com segurança nas flutuantes certezas normativas da ciência biomédica – enquanto a outra perna, que deveria estar apoiada na tentativa de entender a experiência subjetiva da doença inserida na existência humana e na biografia individual, está amplamente sem suporte. Tão logo a teoria predomine devemos procurar o equilíbrio dando atenção à experiência e à prática, ou a estrutura corre o risco de colapsar. Como Ian tão bem compreendia, é a prática individual nas relações entre médicos singulares e pacientes singulares que nos ensina o poder da interação entre biologia e biografia, e a necessidade de equilibrar nossa atenção entre ambas.

O filósofo anglo-americano Stephen Toulmin, que faleceu em 2009, parecia perceber o mesmo desequilíbrio quando escreveu sobre a necessidade urgente de

“(…) reconhecer e respeitar as diferenças essenciais entre o conhecimento médico e o científico – notadamente, a complexa mas indispensável fusão que o médico faz entre a teoria e a prática, o geral e o particular, o universal e o existencial.”(3)

E Toulmin enfatizou a importância de deixar “claro o quão longe a fusão entre medicina e ciência biológica pode chegar, que seria destruir o caráter essencial da prática e da compreensão médica.”(3)

Meu medo é que, como na figura esculpida por Keld Mosehelm, nós estejamos às margens dessa destruição. Médicos, e talvez MFC em particular não são cientistas biomédicos – eles têm uma responsabilidade diferente, que é a de buscar aliviar a angústia e o sofrimento humano e, para este fim, aplicar descobertas científicas genéricas, derivadas do estudo de populações, em indivíduos singulares. A ciência é habitualmente biológica, mas não exclusivamente, e assim cada indivíduo tem uma biografia particular que afeta profundamente sua biologia e sua experiência de saúde, doença e enfermidade.

A maior parte da pesquisa científica em medicina, mesmo na MFC, tem priorizado a biologia sobre a biografia. Precisamos ressignificar a subjetividade distorcida dos relatos e renomeá-las como histórias, e vê-las como uma unidade básica de pesquisa na MFC que reafirme a importância da biografia ao lado da biologia. Cada história é diferente porque, como Philip Roth observou, “a natureza intrínseca do particular é ser particular, e a natureza intrínseca da particularidade é sua incapacidade de se conformar.”(4)

Todo MFC sabe que a incapacidade de perceber as sutilezas de cada paciente, seus dilemas e suas circunstâncias pode ter implicações graves.

Quem vem primeiro: teoria ou prática? Isso importa? Quero argumentar que sim, a resposta à primeira pergunta realmente importa para o futuro da pesquisa e da prática clínica na MFC. Pesquisas que começam com uma questão teórica, e que procuram respondê-la examinando a prática ou mesmo alterando-a antes de retornar à teoria são bem diferentes de pesquisas cujas perguntas surgem da prática clínica diária, são testadas ao serem confrontadas com teorias já estabelecidas ou usadas para gerar novas teorias, e então retornam para informar seus resultados à prática, particularmente porque o ciclo prática-teoria-prática leva consigo uma possibilidade muito maior de dialogar com a experiência subjetiva de médicos e pacientes, e com a solidariedade entre eles.

Em 1956, o escritor inglês George Ewart Evans publicou sua obra-prima sobre história oral, intitulada “Ask the Fellow Who Cut the Hay”. Seria oportuno se os responsáveis por elaborar políticas públicas de saúde pudessem ser convencidos a refletir sobre esse título. Há uma perturbadora e difusa ausência de conhecimento sobre a experiência diária de trabalhar na linha de frente dos serviços públicos, e maior ainda sobre a valoração e respeito a essa experiência. No Reino Unido isso se aplica a professores, assistentes sociais, servidores públicos, policiais, bombeiros, enfermeiros, médicos e muitos outros. É indubitavelmente verdadeiro que para os que trabalham em serviços de saúde, o que é particularmente triste, como vemos todos os dias, os efeitos da violência estrutural e da injustiça social produzem adoecimento prematuro e comprometimento da qualidade e duração de suas vidas.

As pessoas que “cortam o feno” nos serviços de saúde tanto no Reino Unido quanto no Canadá concordariam, eu acredito, com a filósofa neerlandesa Annemarie Mol quando ela escreveu “Nosso arcabouço teórico parece estar por demais adaptado à tarefa de criticar. Ele desmascara. Ele tende não à exploração ou à construção de ideais, mas ao enfraquecimento.”(6)

Assim, para tentar ir além desse contexto deprimente, assim como Ian McWhinney o fez com tanta frequência, eu vou buscar inspiração além da medicina.

Eu não tenho religião e me considero uma ignorante em teologia, mas muito da inspiração que tive para pensar sobre esses ciclos vieram de conversar com meu amigo e colega de trabalho Stephen Pattison, professor emérito de Religião, Ética e Prática na Universidade de Birmingham, no Reino Unido, e um ex-membro da comissão de ética médica da Associação Real de Médicos de Família. Em uma discussão publicada em 2013 sobre teologia prática, Stephen escreveu: “Nós começamos de onde estamos, do meio da vida e da experiência; é no momento atual de seres encarnados que nós escolhemos prestar mais atenção a coisas em particular e direcionar nosso olhar em questões específicas.”

E Stephen completa:

“Se a teologia prática começa no aqui e agora da experiência e da prática, ela também termina aqui, ao tentar responder à questão fundamental e estrutural, “E daí?”…de que maneira nossas iniciativas de pesquisar nos devolvem ao nosso mundo de experiências e práticas, confirmado, alterado ou diferente?”

Da perspectiva de um médico, a pesquisa sempre precisa ser relevante para a sua prática, ou será inútil.

O antropólogo americano Clifford Geertz escreveu: “Teoria… surge a partir de circunstâncias particulares e, embora abstrata, é validada pelo seu poder de ordená-las em suas particularidades, não por descartá-las”(7). E novamente, você pode ver que ele se refere a um ciclo prática-teoria-prática.

Ian escreveu: “Muitos diagnósticos são processos de categorização, de generalização. Gerenciar o cuidado é um processo de síntese, de individualização”(1). Ele nos lembra da necessidade de equilíbrio e de oscilação contínua entre a prática e a teoria, de maneira cíclica. A ênfase e centralização na prática me faz pensar na MFC como um artesanato.

Em seu livro “O artesão”, um título infelizmente gênero-específico, o sociólogo americano Richard Sennett escreveu: “Essa é a absorção pelo conhecimento tácito, não-dito e não codificado em palavras…os milhares de pequenos movimentos do dia-a-dia que se somam e constituem a prática.”(8)

E eu acho que Ian prestou muita atenção a esses pequenos movimentos cotidianos que compõem nossa arte e nossa prática: “Se olharmos com atenção, todo paciente é diferente de alguma maneira. É no cuidado a cada paciente que o conhecimento das particularidades se torna crucial. Cuidar é atentar para os detalhes.”(9)

Sennett escreveu que cuidar se trata daqueles movimentos cotidianos de atenção:

“As recompensas emocionais que o artesanato oferece para a obtenção de habilidades são duas: as pessoas estão ancordas à realidade tangível, e podem se orgulhar do seu trabalho. Mas a sociedade tem impedido essas recompensas e continua a fazê-lo hoje em dia”.(8)

Eu acredito que aqueles envolvidos com a prática clínica ainda estão ligados à realidade tangível, ao contrário de vários responsáveis pelas políticas públicas, mas como Ian antecipou, me parece que tem se tornado cada vez mais difícil nos orgulhamos do nosso trabalho e de nossas habilidades. O filósofo americano Carl Elliott, escrevendo de fora da nossa profissão, diz: “mudanças tecnológicas e financeiras têm feito intensa pressão não apenas na forma como a medicina é feita mas nos valores que os médicos se propõem a sustentar.”(10)

E escrevendo de dentro da profissão, Sandeep Jauhar diz: “Há uma sensação palpável de luto. O trabalho para muitos se tornou apenas isso – um trabalho.”(11)

Parece que Ian estava sendo preciso por todos esses anos ao apontar os danos que poderiam ser causados pela insistência em nos olharmos como peças substituíveis.

Ciência/filosofia

Eu tive a preciosa oportunidade de ver e ouvir Ian pessoalmente em apenas duas ocasiões. A primeira foi quando ele fez a Conferência William Pickles, no Encontro de Primavera da Associação Real de Médicos de Família em Aberdeen, Reino Unido, em 14 de abril de 1996 (9). Foi uma absoluta revelação para mim. Ian era surpreendentemente franzino e sua voz era suave, e ainda assim eu nunca havia visto tanta concentração por parte de uma platéia tão grande. Foi após aquela brilhante conferência que eu comecei a pensar em Ian como parte de uma tradição da filosofia natural, que começou a desaparecer há alguns séculos, após Newton; antes daquilo, a ciência era considerada parte da filosofia e a filosofia era parte da ciência. A separação entre as duas era impensável. E embora no Reino Unido as pessoas jovens que desejam estudar medicina agora só precisem estudar ciência a partir dos 15 anos de idade, de alguma maneira, para Ian, a separação permanecia impensável. Para citar o especialista em bioética americano Edmund Pellegrino, “A filosofia nos diz o que é permanente na prática médica, enquanto a ciência aponta o que está em constante mudança”(12).

Em seu livro, Ian citou R.J. Baron, que escreveu em 1985: “Existe um grande abismo entre a maneira como pensamos nas doenças enquanto médicos e a maneira como as vivenciamos como pessoas”(13). A primeira está mudando o tempo todo, a última parece ser permanente.

Então voltamos à escultura de Moseholm e à instabilidade de uma perna firmada na ciência e uma perna sem apoio, que deveria estar firmada em outras modalidades do conhecimento humano que pudessem nos ajudar a entender a experiência subjetiva do adoecimento e do sofrimento, onde a ciência médica tem muito pouco a nos oferecer.

Em sua Conferência William Pickles, Ian citou quatorze fontes diretamente, a maioria delas de fora da medicina: de Charles Taylor e William James a Jean Piaget, C.S. Lewis e Umberto Eco(9). A ciência em geral e a medicina em particular têm sido profundamente enfraquecidas ao negligenciar a filosofia e as várias outras modalidades do pensamento humano, e parece que Ian estava recrutando mentes brilhantes para tentar reforçar aquela perna sem apoio. E para nos ajudar a priorizar novamente o que o antropólogo médico Arthur Kleinman descreveu como “os interesses mestres do clínico: a realidade difícil e exigente da doença como uma experiência humana e as principais relações e tarefas do cuidado clínico”(14).

O que a medicina sozinha – balançando sobre a sua única perna apoiada – pode nos dizer sobre a difícil realidade da doença como uma experiência humana? Ian parecia estar explorando o cerne dessa dialética em particular quando escreveu:

“O termo ‘psicossocial’ é uma abstração e apaga a intensidade dolorosa do que realmente acontece. Shakespeare fala sobre “aquela coisa perigosa que pesa sobre o coração”. Se nós falamos sobre o sofrimento, não devemos nos distanciar da experiência. Encarar o sofrimento de um paciente dessa maneira, não atrás de uma barreira ou como um expert executando uma técnica específica, mas de uma pessoa para outra, é talvez nossa tarefa mais difícil.(15)

Parece que, devido ao nível em que atua nos relacionamentos, e apesar dos esforços de Ian, a MFC tem sido mais prejudicada pela negligência das humanidades e da filosofia ao longo da educação, do pensamento e da prática médica. Em um ensaio de 2019, Nicholas Maxwell, professor emérito de História e Filosofia da Ciência na University College de Londres, escreveu:

“Longe de ser mais uma disciplina especializada, diferente de outras disciplinas e à margem dessas, como vários filósofos acadêmicos lutam para estar hoje em dia, a filosofia propriamente dita deve ter como tarefa básica enfrentar a especialização, mantendo vivo o pensamento sobre problemas fundamentais de maneira que interaja, em ambas as direções, com a pesquisa especializada.”(16)

Me parece que isso se aproxima da tarefa que Ian atribuiu a si mesmo – enfrentar a especialização mantendo vivo o compromisso de pensar sobre os problemas fundamentais que surgem constantemente na prática da medicina.

Mapa/território

Foi enquanto escutava Ian em Aberdeen que eu ouvi pela primeira vez algo sobre o filósofo e cientista polonês-americano Alfred Korzybski, que ficou famoso por sua descrição da lacuna entre o mapa e o território. Korzybski escreveu: “Um mapa não é o território que ele representa, mas, se estiver correto, tem uma estrutura similar ao território, que responde por sua utilidade.”(17)

Respondendo a essas ideias, Ian disse:

“Não podemos vivenciar a beleza ou o terror de uma paisagem ao olhar o seu mapa…há uma certa emoção em fazer bons diagnósticos (nos localizando no mapa), e pode haver beleza em uma radiografia. Mas isso não é o mesmo que sentir a experiência do paciente ao adoecer – e pacientes são rápidos em perceber a diferença. Se pretendemos curar tanto quanto ser técnicos, precisaremos em algum momento deixar os mapas de lado e andar de mãos dadas com nossos pacientes pelo território.”(9)

Entender a saúde como o oposto da doença é um erro de categoria: a saúde pertence ao território e está mais próxima do amor e da esperança; a doença pertence ao mapa. A prevenção das doenças jamais pode ser vista como promoção da saúde, embora as duas expressões sejam frequentemente usadas como sinônimos.

A experiência de olhar para um mapa, mesmo detalhado, não se compara à experiência de andar em uma paisagem. Similarmente, o mapa da ciência médica não é nada comparável à paisagem do sofrimento humano – o território, usando a terminologia de Korzybski. O mapa oferece um guia mas não chega perto de capturar a realidade da experiência.

É essa lacuna – entre uma palavra e seu objeto; entre um diagrama e o que ele tenta representar; entre a natureza e nossa compreensão sobre ela; entre o subjetivo e o objetivo; e mesmo entre o “alto e duro chão” da racionalidade técnica de Donald Schön e o “terreno pantanoso” da prática profissional (18). A incerteza é inevitável nesse espaço, de acordo com Marcelo Pakman:

“Essa lacuna sinaliza o local onde as escolhas surgem, a ética nasce, a democracia cresce, a justiça evolui, segredos, mentiras e erros constituem comunicação, e a identidade humana se torna uma questão de autoilusão e composição”.(19)

A liberdade, o desafio e a potencial inovação da prática médica existem nesse espaço entre o mapa da ciência médica e o território da doença e do sofrimento.

A tarefa de fazer o mapa médico útil para aqueles aprisionados no território do sofrimento é – e sempre será – repleta de incertezas por causa da grande extensão e variação infinita do território e da natureza relativamente rudimentar do mapa. Mas a incerteza e a dúvida que os clínicos vivenciam diariamente são também o que permite que novos conhecimentos e compreensões sejam possíveis. Precisamos duvidar das explicações existentes se queremos descobrir outras melhores. Assim, a tarefa demanda sabedoria e capacidade de julgamento tanto quanto conhecimento. A base da sabedoria é a dúvida.

Para trabalhar efetivamente, o médico deve manter um entendimento claro sobre as duas margens desse espaço. Isso requer atualização detalhada, robusta e contínua do conhecimento sobre as ciências médicas; uma intenção empática para reconhecer, acolher e testemunhar a real extensão do sofrimento; e uma apreciação dos detalhes das vidas dos indivíduos, combinados com o respeito pelas histórias, aspirações e valores que tornaram essas vidas o que elas são.

O contexto social e cultural e a história de vida do paciente moldam a natureza e a experiência do adoecimento, e dessa maneira tornam o mapa esquemático e padronizado mais ou menos útil. O mapa só pode ser mais útil, e mesmo assim de maneira dolorosamente lenta, se nós estivermos preparados para duvidar de sua acurácia. Se nós não conseguirmos enxergar as lacunas, estaremos em perigo.

A chave é se manter pensando que (nas palavras de John Ralston Saul): “verdades absolutas são ideologias, e são o oposto da linguagem e de usar o intelecto e a inteligência”.(20)

Para mim, voltando a 1997, um texto curto no BMJ enfatizou o imperativo da dúvida e de dar crédito à sabedoria dos pacientes. Trefor Roscoe escreveu:

“O paciente era um homem de meia idade que veio em busca de seus medicamentos. Ele tinha acne rosácea e fazia ciclos intermitentes de seis semanas com oxitetraciclina. Ele precisava dos medicamentos apenas duas ou três vezes por ano para manter a doença sob controle. Como eu era novo na clínica e ele não vinha com tanta frequência, eu me lembro de perguntá-lo se no geral ele se sentia bem e saudável. Ele mencionou uma indigestão eventual e em seguida disse algo que me pareceu bem estranho. Minhas anotações daquela consulta diziam “Renovo receita Oxytet 100. Indigestão ocasional. Diz que a Oxytet a cura!” Eu sublinhei a última frase e adicionei o ponto de exclamação porque fiquei bastante surpreso. Eu me recordo de perguntá-lo quais comprimidos ele achava que ajudavam com a indigestão e ele me confirmou. Ele não se preocupou em concluir o tratamento com cimetidina prescrito por meu colega alguns meses antes; eles não funcionaram. Na ocasião eu o achei bem esquisito. Antibióticos não curavam indigestão em 1987.

Alguns anos depois, quando a bactéria Helicobacter pylori foi descoberta, eu me lembrei dessa consulta. Uma das recomendações iniciais para o tratamento do H. pylori eram as tetraciclinas, e alguns protocolos de tratamento ainda as recomendam. A resistência hoje é um problema mas esse paciente havia feito uma observação… Se eu contasse aos meus colegas sobre essa “descoberta” eles ririam de mim, dizendo que bloqueadores H2 eram o tratamento padrão, não antibióticos.”(21)

Roscoe concluiu:

“Esse homem me ensinou algumas coisas. A consulta mais simples pode ficar na sua mente em detalhes e voltar anos depois, quando sua importância for percebida… Nós ignoramos as coisas que não se encaixam na visão padrão por nossa conta e risco.”(21)

No relacionamento entre médico e paciente, o médico tem o mapa biomédico e tem a responsabilidade de o ter estudado bem. A tarefa de ambos, médico e paciente, é explorar a utilidade e as limitações do mapa em relação ao território do adoecimento do paciente.

Qualquer outro profissional de saúde carrega diferentes mapas, que não são menos válidos para sua atividade profissional, mas apenas os médicos estão equipados com o mapa da ciência médica. Todos os médicos carregam o mapa médico, embora com níveis variáveis de detalhamento, mas apenas o médico generalista usa o mapa para tentar entender o sentido da pessoa como um todo, transcendendo todas as divisões arbitrárias da prática especializada.

Pensar/sentir

A tensão dialética entre pensar e sentir tem relação com razão e emoção, e se espelha naquela entre teoria e prática. Ian estava preocupado com a negação do sentimento na medicina: tanto os sentimentos dos pacientes quanto dos médicos.

Em seu artigo “Medicina é uma forma de arte”, ele citou Samuel Taylor Coleridge:

“‘Pensamento profundo’, dizia Coleridge, ‘só pode ser alcançado por uma pessoa de sentimento profundo.’(…) O intelecto e o sentimento são dois aspectos inseparáveis de uma personalidade bem ajustada. Nosso sistema moderno de educação médica, ao desenvolver apenas uma parte da pessoa, tem produzido uma geração de médicos que são analiticamente brilhantes, mas em outros aspectos são inocentes e limitados.”(22)

Eu nunca fui apontada como sendo analiticamente brilhante, mas meus pacientes frequentemente me fazem sentir inocente e limitada. E estamos de volta à perna sem apoio – tanto pensar quanto sentir são essenciais: “As tarefas centrais da vida de um médico são entender o adoecimento e entender as pessoas.”(1)

Pensar para entender o adoecimento; sentir para entender as pessoas. “A experiência mobiliza nossos sentimentos tanto quanto nosso intelecto. As emoções desempenham um papel muito importante na prática clínica, e como eu tenho dito, são seriamente negligenciadas na medicina como um todo.”(9)

E Ian seguiu produzindo dois exemplos das implicações práticas dessa negligência. O primeiro exemplo:

“Todo o tipo de argumentos técnicos e econômicos têm sido usados contra as visitas domiciliares. Mas com que frequência ouvimos sobre o lar como uma extensão da personalidade; sobre o conhecimento pessoal advindo da avaliação de um paciente em sua própria casa; sobre a qualidade da relação que surge entre médicos, pacientes e familiares no cenário domiciliar; sobre o conforto e acolhimento de um atendimento a uma pessoa doente em sua casa? Temo que nós tenhamos tornado os valores humanos tão subservientes aos valores técnicos e econômicos que eles nem sejam mais considerados em nossas discussões.”(22)

Eu não poderia concordar mais – deve ser significativo o fato de eu conseguir me lembrar de visitas domiciliares específicas de maneira muito mais vívida do que as consultas mais intensas realizadas no consultório – sempre há algo para ver, sempre algo novo para aprender, sempre um relacionamento se torna mais profundo. Eu me lembro de decidir pela MFC porque eu queria ver meus pacientes em suas próprias roupas ao invés daqueles horríveis aventais hospitalares; como eu não desfrutaria do privilégio incrível de fazer visitas domiciliares?

E o segundo exemplo:

“Um grande conjunto de evidências indica que as emoções podem influenciar a função imunológica, fornecendo assim uma ligação psicológica entre a experiência de vida e o curso e desfecho do adoecimento… Isolamento social, por exemplo, aumenta a mortalidade em virtualmente todas as causas de morte. Assim, a ideia de um grupo separado de doenças psicossomáticas é obsoleta.”(9)

Infelizmente, a ideia de doenças psicossomáticas ainda não foi abandonada mais de um quarto de século depois, mas com certeza deveria ser.

Responsabilidade/culpa

Então me permitam finalizar com uma última justaposição, que me parece enfatizar o quão sagaz Ian McWhinney foi, o quão profundo era seu pensamento, e quão profundamente ele sentia.

Aqueles médicos que gostariam de convencer as pessoas de que elas são responsáveis pela própria cura deveriam pensar nas consequências, em culpa e remorso, quando seus esforços não melhorarem a sua própria saúde ou evitarem a sua deterioração.”(1)

E assim, como um tributo final ao Ian, sua particular qualidade da mente, e sua imensa contribuição a mim, a todos nós e à profissão como um todo, me permitam recrutar Abdulrazak Gurnah, que ganhou o Prêmio Nobel de Literatura em 2021:

Com o tempo, lidar com as narrativas contraditórias nesse caminho me parece um processo dinâmico. Dele surge a energia para recusar e rejeitar, para aprender a sustentar nossas reservas. Dele surge uma forma de acomodar e considerar as diferenças, e para afirmar a possibilidade de formas mais complexas de pensar.”(23)

Referências

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