SBMFC entrevista Flávio Dias Silva: vamos falar sobre o GT de Saúde Mental

14 de agosto de 2020

*Flávio Dias Silva é médico de família e comunidade, coordenador do Grupo de Trabalho de Saúde Mental da SBMFC. 

SBMFC: Como se define Saúde Mental?

Flávio: Saúde Mental é um conceito bastante amplo, como o de saúde, em geral. Uma definição abrangente que traduz um pouco do pensamento do GT é que saúde mental é um estado de capacidade emocional, cognitiva e social que possibilita ao ser humano atingir as metas esperadas para seu desenvolvimento, de preferência com superação destas. Por capacidade emocional define-se a habilidade de se lidar com emoções básicas, sejam elas desagradáveis, como tristeza, raiva, medo ou nojo, sejam elas agradáveis como o amor e a alegria. Por capacidade cognitiva, entende-se a competência de solução de problemas através do pensar, mas também o desenvolvimento da metacognição – o penar sobre os próprios pensamentos. E por fim, sobre capacidade social, entende-se a disponibilidade para se exercitar, no dia-a-dia das relações interpessoais e com o mundo, atitudes como empatia, compaixão, cuidado, componentes de um comportamento essencial para o desenvolvimento coletivo, seja em família, seja em comunidade.

 

SBMFC: A abordagem da Saúde Mental pode ser considerada uma das principais características da atenção integral e abrangente na Atenção Primária à Saúde. Como médicas e médicos de família e comunidade podem aprimorar sua abordagem na prática clínica seguindo os princípios da especialidade?  

Flávio: Penso que o MFC deva desde sua formação básica na residência e durante seu projeto pessoal de educação permanente ser submetido a treinamento formal em dois aspectos. Primeiramente, há que se trabalha o próprio médico, estudando tópicos como autogerenciamento emocional (por exemplo, através da participação e grupos Balint), comunicação clínica, e mesmo estimulando-se o tratamento pessoal, quando haja indícios de que o médico está com problemas de saúde mental. Em segundo lugar, é importante que o currículo do MFC contenha formação robusta em 1) métodos de abordagem à saúde mental (psicologia do ciclo de vida, abordagem familiar, facilitação de grupos psicossociais preventivos) e 2) diagnóstico e manejo de transtornos mentais comuns (transtornos de ajustamento e estresse agudo, depressão, ansiedade, uso de substâncias, somatização, principais transtornos de personalidade) e reconhecimento/estabelecimento de cuidado colaborativo com especialistas no caso de transtornos menos comuns (transtorno de estresse pós-traumático, transtorno bipolar, esquizofrenia, TOC, transtornos de personalidade, etc).

 

SBMFC: Quais os problemas de Saúde Mental têm maior incidência no Brasil?

Flávio: De uma maneira geral, os estudos brasileiros tem revelado que em adultos os problemas mais frequentes são transtornos de ansiedade, de humor, somatoformes e transtornos relacionados ao uso de substâncias psicoativas; já em crianças e adolescentes, além de problemas de ansiedade, humor e uso de substâncias, destacam-se também o transtorno de déficit de atenção e hiperatividade, e os transtornos de conduta. Entretanto, antes de se efetuar um diagnóstico destes transtornos, é importante que o MFC reflita se as queixas ou problemas trazidos pelas pessoas que atende não são recentes demais, e/ou exclusivamente desencadeadas por estressores transitórios. Neste caso, um diagnóstico de Transtornos de Ajustamento talvez seja o mais correto, e este conceito tem sido pouco enfatizado na formação do MFC.

 

SBMFC: Como se configuram na segunda Classificação Internacional de Atenção Primária (CIAP II)?

Flávio: A CIAP II apresenta um capítulo específico para os transtornos mentais (capítulo P – Psicológico), que guarda certa correspondência à Classificação Internacional de Doenças (CID-10). Entretanto, como a CIAP II segue uma lógica de caracterização de episódio de cuidado, focada no problema principal detectado, alguns sintomas emocionais específicos estarão em capítulos relacionados ao problema principal; como exemplo, medo de ter câncer não é classificado como problema psicológico, mas como “medo de câncer”, no capítulo A, de sinais e sintomas – capítulo este que é bastante recomendado a consulta antes de qualquer confirmação diagnóstica de problema de saúde mental.

 

SBMFC: O Brasil é considerado o país “mais ansioso do mundo” pela OMS e a depressão também tem índices consideráveis no país. Nesse contexto, o que justifica esse título?

Flávio: Ansiedade e depressão ainda são condições pouco compreendidas, apesar dos grandes esforços das últimas décadas. Tem se descoberto que vários fatores biológicos implicam no desenvolvimento e manutenção dos quadros de ansiedade e depressão, mas estes não são exclusivos da população brasileira. Por outro lado, os fatores de risco psicossociais que tem sido associados a tais transtornos, como desigualdade social, pobreza, traumas na infância, violência doméstica e uso de substâncias, são bastante prevalentes em nosso país, e isso pode ser uma das explicações para este indesejado título.

 

SBMFC: Na graduação há disciplinas focadas ou que estimulem a atuação dos generalistas em Saúde Mental?

Flávio: Sim, essencialmente após a reformulação das Diretrizes Curriculares Nacionais dos Cursos de Graduação em Medicina, em 2014, quando se passou a exigir que as escolas médicas desenvolvessem o chamado Internato em Saúde Mental – um período do estágio final do curso dedicado exclusivamente a essa área. Além disso, algumas escolas tem tentado articular o ensino de problemas de saúde mental com a APS em alguma disciplina já no período anterior ao Internato.

 

SBMFC: Há envolvimento dos MFCs na docência nessa área?

Flávio: Desde 2014 este número tem aumentado, isso em parte pela escassez de psiquiatras no Brasil, mas em parte também porque está cada vez mais claro que não há formação generalista sem formação básica em saúde mental. Sendo assim, os MFCs que desejarem se aprimorar nesta área encontram fértil campo de docência na graduação em Medicina.

 

SBMFC: Como se preparar as médicos e médicos de família e comunidade para atuar com essas demandas durante a residência médica?

Flávio: Cada programa de residência apresenta sua proposta, mas de maneira geral a maioria dos programas prevê discussões de casos semanais nos quais não só aspectos da saúde física da pessoa são debatidos, mas também de sua saúde mental e de sua família. O residente em MFC é estimulado a entender de maneira articulada os problemas de saúde física e mental, e a compreender a interferência de uns sobre os outros. Questões como má-adesão a tratamento para doenças crônicas como diabetes ou hipertensão, por exemplo, exigem este tipo de integração de conhecimentos. Além disso, o ensino das ferramentas da MFC como abordagem familiar e comunitária, e habilidades de comunicação vão “pavimentando” a base para o estudo dos problemas específicos de saúde mental, que via de regra são feitos  em “módulos”. Nestes módulos, em alguns programas restritos ao segundo ano da residência, o residente dedica seu tempo predominantemente à estágios com psiquiatras ou outros especialistas em saúde mental, em serviços especializados, em paralelo com intensa formação teórica sobre o diagnóstico e manejo dos transtornos mentais comuns.

Apesar desse trabalho já bastante consagrado, ainda vejo como necessidade a formação em técnicas psicoterápica factíveis na APS como psicoeducação, facilitação de grupos de apoio, terapia de solução de problemas e entrevista motivacional.

 

SBMFC: Há especializações nesta área?

Flávio: Ainda em número muito insuficiente. Ao contrário de países como Singapura, que assumiram a necessidade de que MFC’s precisam de formação mais robusta em atenção à Saúde Mental e criaram cursos de pós-graduação específicos, o Brasil ainda carece de iniciativas formais. Uma bela exceção é o Curso de Especialização em Saúde Mental da Universidade Federal do Maranhão em parceria com a Universidade Aberta do SUS (UFMA/UNASUS). 

 

SBMFC: Quais são outras ofertas de cursos de capacitação e aprimoramento?

Flávio: A própria UNASUS possui uma série de cursos de capacitação no formato Educação à Distância na temática de Saúde Mental. Além disso, o GT de Saúde Mental tem ofertado diversas atividades nos Congressos Brasileiros de MFC, como no de 2019, em Cuiabá. Por fim o GT de Saúde Mental está formatando algumas oficinas neste sentido, que em breve devem ser disponibilizadas aos sócios da SBMFC.