SBMFC entrevista Marcela Dohms

2 de outubro de 2020

Marcela Dohms é médica de Família e Comunidade, expert em Comunicação Médica. Estudou o tema no Mestrado (UFSC) e Doutorado (USP). Atualmente como pesquisadora visitante na Holanda em pesquisa postdoc sobre Ensino de Habilidades de Comunicação Médica.

 

SBMFC: A comunicação é uma das bases para o bom exercício da Medicina de Família e Comunidade. Na sua opinião, quais os desafios para os profissionais se comunicarem com os pacientes? 

Marcela: Acredito que no Brasil ainda não há uma ênfase suficiente sobre esse tema na formação médica, como já ocorre em outros países. Esse é o primeiro desafio: maior aprofundamento teórico e treinamento de habilidades de comunicação na formação médica. A maioria das escolas brasileiras infelizmente não seguem as diretrizes internacionais para um currículo de comunicação médica, tanto na graduação como na pós-graduação.          

Entendo que também é um desafio ter mais reflexão sobre a prática, com maior entendimento e conscientização sobre as possíveis consequências das palavras (assim como dos silêncios) que escolhemos durante a entrevista clínica ao fazer as perguntas ou ao comunicar as informações para as pessoas que atendemos. Essas consequências têm impacto direto na confiança do paciente no seu médico e consequentemente na adesão ao tratamento e indicadores de saúde. Além disso, como os profissionais se comunicam influencia no quanto o paciente vai se sentir à vontade para fornecer informações muitas vezes difíceis de serem reveladas ao médico e que serão essenciais para um bom diagnóstico clínico e também para conseguirmos tranquilizar o paciente. Sem saber o que mais preocupa o paciente fica difícil saber como melhor tranquiliza-lo.

 

SBMFC: O livro surgiu como? Como foi a experiência de organizá-lo? 

Marcela: A ideia do livro surgiu como sugestão da minha banca de doutorado, que foi sobre o tema de comunicação clínica. E já algum tempo que eu e Gustavo Gusso, que também sempre se dedicou à formação em comunicação clínica e têm experiência na organização de importantes livros em MFC, já vínhamos pensando na ideia do livro e de um curso. Muitas pessoas nos pediam cursos e referências no assunto e percebermos que ainda não havia muita literatura publicada por autores brasileiros sobre esse tema. Então resolvemos aceitar esse desafio.

A experiência em organizar o livro foi bem interessante, porque possibilitou reunir muitos coautores (a maioria médicos de família!) que vêm se dedicando a estudar e aprofundar temas na área de comunicação clínica. Pudemos fazer uma certa forma de comunicação entre os coautores, buscando trazer o que tem de novo nas referências internacionais e ao mesmo tempo tentando integrar com as nossas especificidades culturais brasileiras.

A ideia também é que o livro seja material de base para um curso online que estamos desenvolvendo e que será lançado final do ano em parceria com a editora Artmed.

 

SBMFC: Como o livro pode auxiliar médicas e médicos de família e comunidade no dia a dia da APS? 

Marcela: Entendo que a comunicação clínica é importante para todos os profissionais, mas mais ainda para os médicos de família, porque a relação é um eixo central do processo terapêutico na nossa especialidade. A nossa relação com os pacientes é longitudinal, geralmente de maior proximidade afetiva e de abordagem familiar. E como em todo relacionamento, é natural que surjam situações difíceis, com mal-entendidos, reações emocionais de irritabilidade, raiva e frustrações, tanto no médicos como no pacientes. Acho que o livro pode ajudar o médico de família a refletir e compreender melhor esses processos. O livro traz sugestões de habilidades de comunicação que podemos usar para evitar essas situações e também traz sugestões para o médico de família encontrar estratégias práticas para abordagens diferentes nessas situações desafiadoras.

O livro também é muito útil para os médicos de família que são preceptores de residência ou professores na graduação, porque explica sobre as principais recomendações para o ensino de competências de comunicação clínica. No livro discutimos sobre as principais metodologias e instrumentos de avaliação, que é uma parte bem difícil no processo de ensino de ensino-aprendizagem neste tema. Tem um capítulo todo sobre videofeedback que foi meu tema de doutorado e que tem sido considerado uma metodologia de ensino inovadora e bem completa nessa área.  Além disso, o livro possibilita o acesso a vídeos de situações-problemas e exercícios que podem ser usados para discussão em aula.

 

SBMFC: Alguns capítulos abordam características da abordam sobre espiritualidade, sexualidade e até notícias difíceis, situações de violência. Como foram escolhidos esses tópicos para aprofundamento no livro? 

Marcela:  Procuramos trazer inicialmente um embasamento teórico de conceitos fundamentais e resumo dos principais estudos na área. Seguimos os temas sugeridos pelos consensos internacionais para ensino de comunicação clínica, pensamos em tópicos especiais e escolhemos as situações mais desafiadoras na prática dos profissionais de saúde para aprofundar em capítulos próprios. Buscamos em cada capítulo trazer questões iniciais para reflexão, pontos que precisamos ter mais cuidados, dicas práticas e uma abordagem multiprofissional. E para entender melhor tudo isso, dedicamos um módulo ao aprofundamento das emoções que surgem nas consultas, incluindo um capítulo sobre Grupos Balint.

 

SBMFC: O resumo da editora aponta para “uma combinação de autores nacionais e internacionais de referências”. Comente sobre os critérios e desafios para escolha dessas referências.

Marcela   Temos alguns autores estrangeiros que vêm nos apoiando há muitos anos, inclusive em parceira com a SBMFC com cursos nos nossos congressos. Por exemplo, os espanhóis Juan Gérvas e Mercedes que estiveram varias vezes no Brasil e conhecem bem nossa realidade. Outros autores que fazem parte do Grupo de Comunicação da Sociedade Espanhola de Medicina de Família (SEMFYC), que é uma importante referência para nós, por ter uma forte e longa tradição em comunicação clínica. Tive a oportunidade de conhecer o grupo durante minha pesquisa de mestrado em Barcelona em 2010. Josep Maria Bosch tem sido coordenador desse grupo há muitos anos e já esteve dando workshops nos nossos congressos de MFC.

Temos também o português Jorge Brandão, que faz parte da International Balint Federation e do WONCA e que vêm apoiando desde o início a Sociedade Brasileira de Balint, junto com a psicóloga e psicanalista Alice Polomeni, que tem uma experiência impressionante na área de psicologia médica e Grupos Balint, atuando já há algumas décadas na França.

 Sabemos claro que têm muitos outros autores nacionais que também têm se destacado como referências importante na área. Para este livro convidamos principalmente os profissionais que têm publicado na área ou aprofundado o tema em mestrado ou doutorado. Temos também médicos de família com atuação na coordenação do GT de Comunicação da SBMFC. Convidamos alguns psiquiatras que têm aprofundado a discussão de comunicação em saúde mental com interface com a Atenção Primária e WONCA, como Sandra Fortes e Luiz Chazan. Convidamos também a pediatra Suely Grosseman, que tem sido umas das poucas pessoas no Brasil com formação específica no ensino de habilidades de comunicação e orientadora de muitos trabalhos nessa área, e que faz também uma interface com a Associação Brasileira de Educação Médica. Enfim, entre vários outros coautores que brilhantemente compartilham seus conhecimentos e reflexões.

 

SBMFC:  Por que a leitura do livro é recomendada? 

Marcela: Porque sempre podemos aperfeiçoar nossos encontros com os pacientes e refletir mais sobre as situações práticas que nos mobilizam emocionalmente. Porque isso nos ajuda a estar mais consciente sobre nossas reações emocionais e a trabalhar de maneira mais confortável no dia-a-dia, diminuindo burnout e prevenindo mal-entendidos. Também, compreendendo melhor as preocupações do paciente, sendo mais empático, informando melhor, incluindo mais o paciente na decisão terapêutica e assim, podendo ajudar mais os nossos pacientes que nos procuram na atenção primária nos momentos mais difíceis da sua vida.

 

SBMFC: Deseja finalizar com alguma mensagem aos futuros leitores? 

Marcela: Convidamos que os leitores compartilhem suas reflexões sobre os capítulos e troquem ideias com a gente através do site do livro. E convidamos a todos a participar do curso online previsto para lançamento no final do ano. Estamos preparando o curso para trabalharmos os conteúdo teóricos de uma forma bem dinâmica e prática!