SBMFC entrevista Mulheres na MFC

11 de dezembro de 2020

Entrevista respondida pelas coordenadoras do Grupo de Trabalho Mulheres na Medicina de Família e Comunidade da SBMFC. 

Carolina Reigada, mãe, médica de família e comunidade, mestre em atenção primária à saude. Preceptora da residência em medicina de família e comunidade da ESCS-DF. Co-coordenadora do GT Mulheres na MFC.

Bruna Ballarotti, mãe, médica de família e comunidade, Mestra em Ciências pelo Programa de Saúde Coletiva da Universidade Federal de São Paulo, professora de Atenção Primária à Saúde no Curso de Medicina da Universidade Cidade de São Paulo. Co-coordenadora do GT Mulheres na MFC.

Denize Ornelas Pereira Salvador de Oliveira, mãe, Médica de Família e Comunidade e Mestre em Saúde da Família, coordenadora do Programa de Residência Médica de MFC da Secretaria de Saúde de São Bernardo do Campo, docente da graduação em medicina da Universidade Nove de Julho, Co-coordenadora do GT Mulheres na MFC.

Patrícia Chueiri, médica de família e comunidade, mãe, mestre e doutora em epidemiologia, professora da Faculdade de Medicina do Hospital Israelita Albert Einstein e Co-coordenadora do GT Mulheres na MFC.

 

SBMFC: As mulheres são maioria na Medicina de Família e Comunidade e também nas matrículas dos cursos de graduação em medicina, segundo a demografia médica do CFM. Quais as hipóteses para esse os números crescentes?

GT Mulheres na MFC: A feminização da medicina é um fenômeno que está ocorrendo em todo o mundo e pesquisadores apontam que está relacionado a diminuição dos impedimentos das mulheres de ter o mesmo acesso que os homens à educação, às oportunidades de trabalho e aos benefícios sociais. Além disso, no nosso país há um aumento do número de mulheres na população, acompanhado do aumento das matrículas de mulheres no ensino superior. Especificamente na MFC não temos pesquisas que investiguem o motivo da escolha pela especialidade, mas poderíamos supor que essa é uma especialidade que permite maior possibilidade de conciliação entre os horários de trabalho e as expectativas de não fazer plantões, continuar estudando, ser mãe, etc.

SBMFC:  A participação nos congressos da especialidade se expressa com maioria de mulheres quando se fala em público participante. Mas quando se trata de palestrantes mulheres, o que números apontaram? É preciso equilibrar a equidade de gênero nessas participações?

GT Mulheres na MFC: No 14 Congresso Brasileiro de MFC (CBMFC) em Curitiba por exemplo, tivemos 60,7% dos palestrantes nas mesas redondas sendo Homens, e nos apresentadores de Temas de Atualização Clínica (TAC) – 77,1%, sendo os coordenadores das sessões de TAC, 80% homens. As mulheres só foram maioria como facilitadoras de Rodas de Conversas: 60%. A média de oportunidade para um homem ser palestrante ou coordenador de atividades científicas, foi de 2,11, enquanto para mulheres essa média foi de  1,76. 

Por isso, foi feita uma mobilização importante para o 15 CBMFC, em que a própria presidência da Comissão ficou a cargo de Patrícia Chueiri, então Secretária Geral da gestão 2018-20 e uma das coordenadoras do GT. Nesse sentido, os convites para palestrantes e coordenadores de atividade levou em conta a necessidade de ter maior equilíbrio nesses números aumentando o percentual de mulheres nos TAC para 54,3%, e nas mesas, para 45,4%. Infelizmente nos Temas de Debate e Inovação na APS (TeDIs), tivemos um grande desequilíbrio, tendo 74,2% de homens como palestrantes. 

A análise desses dados foi realizada na oficina “Formação de lideranças mulheres para os desafios da MFC” que teve como produto um documento intitulado Carta de Cuiabá, com propostas para promoção de equidade de gênero nos congressos, incluindo o estímulo da ”Maior participação de mulheres nas mesas relacionadas às políticas de saúde e gestão e Maior divulgação dos trabalhos desenvolvidos por médicas de família e comunidade”

Esses dados podem ser consultados no relatório produzido pelo GT no link:

https://www.sbmfc.org.br/wp-content/uploads/2019/08/Historico-e-atividades-GT-Mulheres-2017-19.pdf

SBMFC: Sendo maioria, as médicas de família e comunidade, podemos supor que as mulheres enfrentam desafios diferentes na atuação na especialidade? Quais seriam?

GT Mulheres na MFC: Sim. No campo do trabalho, mulheres enfrentam desafios pelo simples fato de serem mulheres, os quais são naturalizados na nossa dinâmica social. Isso é evidenciado de forma objetiva, como no valor do salário ou da hora trabalhada (mulheres recebem menos que homens, desempenhando as mesmas funções), na ocupação de cargos de chefia e na ascensão profissional. 

Especificamente na medicina de família e comunidade, apesar da maioria das especialistas ser mulher, a grande maioria dos presidentes da SBMFC foram homens. Apesar de as mulheres serem maioria em relação aos homens na conclusão da graduação em medicina, são poucas as que avançam até o doutorado, e essa diferença também é vista na MFC. As mulheres também têm maior chance de serem vítimas de assédio no trabalho e na universidade, e muitas já devem ter passado por situações, durante sua atividade profissional, em que têm sua competência questionada por serem mulheres – e sentirem que precisam trabalhar mais para provar seu valor. Por fim, um dos grandes desafios na carreira profissional é a escolha da maternidade. Muitas sofrem preconceito ao escolherem engravidar e maternar; ficam inseguras quanto à estabilidade no trabalho pois infelizmente nossas leis de proteção à mãe são ainda muito precárias; não têm os meios de garantir a amamentação e ordenha no local de trabalho ou garantia de creche. 

SBMFC: Como as políticas públicas podem fortalecer as mulheres que escolheram a especialidade?

GT Mulheres na MFC: A discussão sobre iniquidades de gênero deve estar presente desde a graduação, de forma que a/o aluna/o consiga enxergar essas lacunas não só nos seus atendimentos, mas no seu cotidiano e ter a possibilidade de alterar, de forma reflexiva, seu comportamento. A educação sobre o assunto é essencial para a ampliação de um debate social que alcance as instâncias de decisão executiva e jurídica, florescendo – como tem acontecido – discussões antes silenciadas. 

Além disso, é necessário que as mulheres tenham garantias como licença maternidade de (pelo menos) 6 meses sem redução salarial conjugadas a licenças parentais da ou do cônjuge; flexibilização de carga horária de acordo com as necessidades do ciclo vital e não prejuízo em relação a gratificações decorrentes de licenças e afastamentos relacionados ao exercício da parentalidade.

SBMFC: Existe alguma área da especialidade na qual a inserção das mulheres se destaca ou é reduzida, como na academia, gestão, preceptoria, etc?

GT Mulheres na MFC: Não existem estudos específicos sobre a feminização dentro da MFC, mas o cotidiano nos mostra que a área da gestão é menos permeável às mulheres, principalmente em cargos mais altos – de tomada de decisão e de responsabilidade financeira importante – , na academia as mulheres estão presentes nas salas de aula mas não tanto nos espaços de pesquisa. Fontenelle e cols (1) em artigo publicado em 2020 em que avaliam o perfil da pós graduação na MFC, evidenciam as mulheres médicas de família e comunidade têm menos chances de obter um mestrado e muito menos chances de obter o título de doutorado, o que é bastante diferente das outras áreas de pós graduação da saúde. Esse fato provavelmente resulta na condução de pesquisas, pois com menor número de pós-graduadas, haverá menor número de mulheres liderando grupos de pesquisas e alçando novos postos nessa área.

SBMFC: Como a SBMFC pode incentivar e apoiar as mulheres que são médicas de Família e Comunidade? E qual o papel dos MFCs homens?

GT Mulheres na MFC: Acreditamos que o GT Mulheres na MFC tem evidenciado muitas dessas questões, e queremos trabalhar de forma cada vez mais propositiva para diminuir as iniquidades hoje ainda vistas. A adoção das Gender Equity Standards para a realização de eventos da sociedade foi um grande passo, mas que precisa ainda ser aprimorado. Na última eleição da SBMFC, por exemplo, ainda não tivemos paridade de gênero nas chapas que concorreram. Entre os diversos cursos e publicações da SBMFC, ainda não temos nenhum que aponte exatamente para a questão do gênero, ou mesmo questões historicamente ligadas às lutas das mulheres, como violência ou aborto legal. Mesmo as discussões como as levantadas aqui, dos desafios profissionais das mulheres médicas de família e comunidade, não estão evidentes. Um dos objetivos do GT, levantados no Encontro que organizamos em Brasília, é aumentar a visibilidade dessas iniquidades entre as médicas de família e comunidade. 

Sobre o papel dos homens, apesar dessa luta ter protagonismo feminino, é necessário o reconhecimento de privilégios e a efetiva atuação na diminuição dessas diferenças. As mulheres são maioria, mas ainda são os homens que têm maior poder e legitimação social na fala. Pensar na sua próxima ação ou decisão considerando: “como posso atuar para diminuir essa lacuna de gênero?” já é um bom começo. 

SBMFC: O que fazer em situações como abuso de autoridade, casos de machismo, assédio moral e também sexual na academia e ambiente de trabalho/atuação? E como prevenir e enfrentar esses problemas?

GT Mulheres na MFC: Um dos pontos essenciais para enfrentamento destas diferentes situações é ter espaços de compartilhamento do ocorrido, é essencial para tomar as atitudes que representam o desejo e a necessidade da mulher que passou por uma dessas situações. A partir daí é mais fácil da mulher não se sentir sozinha, e receber apoio para as medidas legais necessárias, se esse for seu desejo, ou conseguir cuidado especializado (psicológico ou clínico). Outra estratégia importante além de ter apoio dos nossos pares, é saber que a instituição onde a situação ocorreu têm recursos para acolher denúncias, assegurando que elas serão investigadas e atitudes serão tomadas. Para isso é importante que as mulheres sejam incentivadas a falar, não só em termos de denúncias mas da construção dos processos de acompanhamento e apuração de denúncias, sempre garantindo que sejam ouvidas de forma respeitosa, e que possam ocupar espaços de poder que permitam a construção dessas estratégias. Falar sobre o assunto em diversos espaços de formação, educação permanente e de autocuidado, coletivos e individuais, também é uma estratégia de prevenção e enfrentamento.   

SBMFC: Sobre maternidade: como adequar espaços de trabalho para mulheres que estão em fase de gravidez e de amamentação? Como apoiar a participação de mulheres sem rede de apoio em eventos?

GT Mulheres na MFC: Espaços adequados para a amamentação devem estar presentes não só no espaço de trabalho, mas nos espaços de ensinos e isso inclui congressos e atividades afins. Porém não basta apenas o espaço físico, o local deve também ser confortável e adequado para a prática da amamentação ou da ordenha, ter minimamente uma poltrona, um pia para higiene e um fraldário, se possível em ambiente calmo e agradável. Outro ponto importante é que o financiamento deste tipo de ação não deve ser considerado “extra” pelo empregador ou pela comissão do evento, pois são esses espaços que permitem que a mulher em seus diferentes ciclos de vida se mantenha ativa e participante da comunidade. 

Sobre o GT:

SBMFC: Quando foi fundado e qual o propósito?

GT Mulheres na MFC: Foi fundado em 2016, durante a 21a Conferência Mundial da World Organization of Family Doctors (WONCA), realizada no Rio de Janeiro-RJ. Objetiva refletir e discutir sobre a inserção das mulheres na MFC, trabalhando pela equidade de gênero em todos os possíveis campos de atuação profissional: academia, gestão, ensino e pesquisa; assim como na própria instituição técnico-científica representativa da especialidade.. 

SBMFC: Quais são as atividades promovidas?

GT Mulheres na MFC: As atividades do GT, desde sua fundação, foram capilarizadas pela atuação das mulheres participantes em seu espaço profissional, seja na academia, produção de artigos, proposta de atividades em reuniões científicas da especialidade, produção de notas e vídeos instrutivos e campanhas de curta duração, como a que vinha sendo feita em março de 2020 pelo protagonismo feminino, interrompida por causa da pandemia COVID 19. Muitas ações são feitas em conjunto com outros GT’s, como Saúde da População Negra e Diversidade, Gênero e Direitos. Em novembro de 2019, realizamos o I Encontro do GT, de forma independente de eventos promovidos pela SBMFC, e achamos que foi muito positivo para o amadurecimento do trabalho. 

SBMFC: Alguma produção em andamento?

GT Mulheres na MFC: Nesse segundo semestre de 2020, desenvolvemos um vídeo sobre o plano de Parto, no Dia da Gestante em parceria com o GT Saúde da População Negra e outro, na Semana Mundial de Amamentação, incluindo também o GT de Saúde Planetária. Além disso, entre 25 de novembro e 10 de dezembro, estamos coordenando as postagens diárias nas redes sociais da SBMFC contra a violência de gênero, sendo 22 temas abordados em parceria com outros GTS e GIEs da SBMFC e que futuramente irão ser compilados numa publicação. Retomamos as diretrizes do planejamento do GT realizado no primeiro encontro em Brasília, estamos fazendo reuniões temáticas mensais além das organizativas, desejamos realizar o II Encontro do GT, adiado para 2021, mas isso irá depender da evolução da pandemia. Em breve começaremos a discutir a nossa participação no Congresso Brasileiro e IberoAmericano em Vitória-ES no ano que vem, inserindo nossas propostas para a programação.

SBMFC : Quais são os requisitos para participação?

GT Mulheres na MFC: Temos um espaço de acolhimento em nosso grupo de whatsapp, sem pré-requisitos, onde é feita muita partilha de informação e debates em geral. As sócias adimplentes da SBMFC que desejarem compor o GT podem solicitar sua incorporação do grupo oficialmente fazendo seu cadastro e participando dos nossos meios oficiais de comunicação e de operacionalização – nosso grupo de whatsapp, lista de emails e reuniões, onde são discutidas e desenvolvidas as ações do GT.

Referências:

  1. Fontenelle LF, Rossi SV, Oliveira MHMD, et alPostgraduate education among family and community physicians in Brazil: the Trajetórias MFC projectFamily Medicine and Community Health 2020;8:e000321. doi: 10.1136/fmch-2020-000321