SBMFC entrevista Kênia Sciascio: vamos falar sobre tuberculose na APS?

24 de março de 2019

Kênia Sciascio é médica de família e comunidade, membro do Grupo de Trabalho de Problemas Respiratórios da SBMFC. Atua em Rio Claro, São Paulo. 

SBMFC: Podemos considerar a tuberculose um grave problema de saúde no Brasil?

Kênia: A tuberculose é um grave problema de saúde no Brasil e no mundo, sendo a doença infecciosa mais letal da atualidade. O Brasil, infelizmente, é hoje o único país da América Latina que aparece na lista dos 22 países do mundo com 82 % do total dos casos diagnosticados, ficando em 17º posição.  Segundo dados do Ministério da Saúde (MS), no Brasil, entre 2016 e 2017, houve 69.000 novos casos diagnosticados e cerca de 4.500 mortes.  A tuberculose é a primeira causa de morte dentre as doenças infecciosas nos pacientes com AIDS em nosso país (62 % casos).

SBMFC: O tema do Dia Mundial da Tuberculose 2019 é “Chegou a hora”, com ênfase na urgência de atuar nos compromissos assumidos pelos líderes globais para:

  • ampliar o acesso à prevenção e tratamento;
  • construir responsabilidade;
  • garantir financiamento suficiente e sustentável, incluindo para a investigação;
  • promover o fim do estigma e da discriminação, e
  • promover uma resposta de TB equitativa, baseada em direitos e centrada nas pessoas.

Quais medidas e políticas públicas o Brasil pode adotar para assumi-los?

Kênia: O Brasil precisa, ao assumir esse compromisso, urgentemente, de medidas e políticas que sejam capazes de reduzir o efeito devastador da tuberculose na população. Dentre algumas medidas, temos que:

– Qualificar e investir numa melhor formação dos profissionais de saúde que lidam com a comunidade mais diretamente, em especial o agente de saúde, pois é ele que conhece o dia-a-dia da população e mantém o contato mais próximos,  graças às visitas domiciliares.

– O governo deve financiar e estimular estudos e pesquisas na área. Felizmente, em 22/12/2018, o MS e o National Institute of Health (NIH) dos EUA abriram uma chamada pública para inscrições de pesquisadores brasileiros interessados em receber apoio para financiamento em pesquisas biomédicas e clínicas para tuberculose.

– A educação em saúde para a população é algo que deve ser oferecido imediatamente. Dados da Universidade Federal Fluminense (UFF), de 2010, baseados em pesquisa de opinião, constataram que metade da população tinha pouca ou nenhuma informação sobre a tuberculose.  Ao investir em educação, pode-se acabar com os estigmas que o doente carrega, como também reduzir o número de novos casos e fazer diagnósticos e tratamentos mais rápidos.

– Testes diagnósticos rápidos e eficazes são prioritários na atual realidade. Em 24/03/2015, a Câmara dos Deputados, comemorava a aprovação de um projeto de lei que implantava o teste rápido molecular para diagnóstico de tuberculose, para, com isso, ter uma maior rapidez no diagnóstico e início rápido do tratamento, mas infelizmente, essa realidade ainda não se fez presente em todos os municípios da Federação. Também, sabe-se que a oferta dos exames diagnósticos foi de apenas 85,3 % para o total dos casos novos, de acordo com dados do PCNT (Programa Nacional de Tuberculose) 2016-2017.

– Acordos com empresas privadas, não só para obtenção de doações, mas também para campanhas publicitárias como já ocorre pelo mundo afora, também são de grande valia. Só como exemplos: a Coca-Cola, em parceria com alguns governos africanos, usa seus caminhões para transporte de remédio para comunidades mais remotas, locais onde não há infraestrutura mínima e a Unilever, também, faz publicidade, junto com a sua marca Dove, na orientação de medidas preventivas.

Enfim, várias são as possibilidades, precisamos aumentar nosso empenho para termos sucesso.

SBMFC: Recentemente, o Fundo Global de Luta Contra Aids, Tuberculose e Malária fez um alerta sobre a ameaça global da tuberculose multiresistente. O Brasil está preparado para enfrentar um surto, caso a doença chegue ao Brasil? 

Kênia: A multirresistência a drogas é uma realidade e devemos encará-la como tal. A onda de migração no mundo todo aumenta ainda mais essa chance. Atenção especial deve ser dada às prescrições inadequadas, ao controle de qualidade dos medicamentos e ao risco de abandono do tratamento inicial, fatos que aumentam a incidência de farmacorresistência. O Brasil já adota medidas para redução do risco desde a década de 80, com a introdução de fármacos de maior potência no tratamento, com a introdução conjunta da rifampicina com a isoniazida e o emprego da DOST.

 Fortalecer o sistema de saúde vigente no país, promover um maior engajamento dos profissionais de saúde, empoderar a comunidade, desenvolver pesquisas e estimular a mobilização social são desafios que temos que encarar. Outra dificuldade a ser vencida é a redução dos custos dos medicamentos de segunda e terceira linha, que ainda são muito caros.

Enfim, ainda temos um bom caminho a percorrer antes que essa doença desembarque por aqui.

SBMFC: Mesmo no século 21, a tuberculose é a doença infecciosa que mais mata jovens e adultos, segundo a OMS. Por que falhamos nesse sentido? 

Kênia: Infelizmente, ainda hoje, morrem-se muitos jovens e adultos de tuberculose no Brasil. Há uma deterioração evidente de muitos serviços de controle e programas locais de TB e a DOTS não é realidade em todos os municípios brasileiros. Falhamos porque não oferecemos o acesso universal a essa população. Ainda trabalhamos priorizando agendamentos e grupos específicos (hipertensos, diabéticos, gestantes, crianças…) em detrimento de outros, falsamente rotulados como saudáveis. Temos que reforçar a importância do acesso avançado e do acolhimento na APS.

A garantia dos direitos humanos e a melhoria das condições de vida são primordiais, pois sabe-se que a tuberculose é fruto da desigualdade social, sendo reflexo da exclusão social: 25 % das vítimas estão em situação de pobreza e 14 % recebem auxílios, como o bolsa Família. Para vencer essa batalha, precisamos ofertar medidas de prevenção e tratamento, de proteção contra discriminação ou qualquer tipo de ofensa à dignidade da pessoa, melhorar a equidade e a integralidade do cuidado. A comunidade deve ser vista com outro olhar, deve ser encorajada a atuar com coadjuvante dessa história. Não podemos continuar falhando no combate a essas mortes

SBMFC: Como os profissionais da APS podem contribuir para que o número de 67 mil novos casos de tuberculose por ano, no Brasil, diminua?                     

Kênia: A APS é essencial para reduzir o número de casos de TB no Brasil, visto que é um serviço que trabalha como “a porta de entrada” da pessoa ao sistema de saúde. Com acolhimento, acesso facilitado, escuta ativa e trabalho em equipe, temos a possibilidade de detectar precocemente os sintomáticos respiratórios, fazendo um diagnóstico precoce e tratamento adequado e supervisionado. O papel desempenhando pelo agente de saúde é o elo principal dessa cadeia. É o ACS que, normalmente, faz a busca ativa e encaminha os casos suspeitos para a Unidade de Saúde, durante as visitas domiciliares. Na APS, trabalhamos com o cuidado centrado na pessoa, o que garante a criação de uma relação de respeito e confiança mútuos, aumentando as taxas de adesão ao tratamento, de cura e reduzindo as de abandono. A APS está agindo para fazer a diferença.

SBMFC: A taxa do abandono de tratamento é alta? Como o médico de família e comunidade pode reverter esse quadro?

Kênia: Segundo dados do PNCT, a taxa de abandono foi em torno de 10 %, em 2016. Nós, médicos de família, temos um papel importantíssimo na redução desse índice.  Como o tratamento supervisionado é oferecido na Unidade de Saúde, podemos acompanhar o usuário com tuberculose, apoiando-o, esclarecendo suas dúvidas, adotando uma escuta ativa, desmistificando medos e estigmas e orientando os demais profissionais e os familiares do paciente. Também, na APS, promovemos grupos de Educação em Saúde e trabalhamos com a inserção do indivíduo na comunidade. Enfim, com o atendimento centrado na pessoa, podemos reverter essa taxa de abandono. O vínculo e a co-responsabilização de todos é a chave do sucesso.

SBMFC: Deseja compartilhar literatura sobre o tema?

Kênia:

1- https:/www.who.int/news-room/events/detail/2019/2019/03/24/default-calendar/world-tb-day-2019

2- https:/goo.gl/xcafg

3-Programa Nacional de Controle de Tuberculose- Ministério da Saúde 2018

    portalarquivos2.saude.gov.br

4-Manual de recomendações para controle da tuberculose no Brasil

  portal.saude.gov.br,2018.julho

5- Tuberculose: Circulando a informação 2018

   blogdatuberculose.blogspot.com, 2018

6- Tuberculose multirresistente no Brasil: histórico e medidas de controle

  https:/www.scielosp.org, article, rsp

7- Direitos humanos, cidadania e tuberculose na perspectiva da legislação brasileira – 1 edição- 2015 OPAS/OMS no Brasil

8-24/03- Dia Mundial de Combate à Tuberculose

  bvs.saude.gov.br, ultimas-noticias, 262 23/03/2018

Sobre o Grupo de Trabalho de Problemas Respiratórios da SBMFC: 

SBMFC: Entre todos os problemas respiratórios, existem alguns que são mais discutidos e abordados no Grupo?

Kênia:  Asma, DPOC e Tuberculose, além do Tabagismo e Poluição Ambiental.

SBMFC: Qual a frequência de discussão de estudos e artigos no GT?

Kênia: Regularmente, membros do grupo estão sempre envolvidos em revisões de artigos sobre os temas abordados pelo grupo.

SBMFC: Em 2018, houve uma jornada realizada com sucesso. Alguma atividade programada para 2019?

Kênia: Sim, para o segundo semestre estamos planejando:

1º Curso de Abordagem Intensiva do Fumante para a Atenção Primária;

Lançamento do Guia Prático de Abordagem do Tabagismo para a Atenção Primária

Atividades de atualização no Congresso Brasileiro de Medicina de Família e Comunidade em Cuiabá.

Participação da 5ª Jornada do GT de Problemas Respiratórios de Portugal nos dias 07 e 08 Junho em Lisboa.

SBMFC: Para se inscrever no GT, como proceder?

Kênia: Os interessados devem encaminhar e-mail para: gtproblemasrespiratorios@sbmfc.org.br